EPCM - Ch. 25 - Quarto Impacto (4/4)

A
ssim que a luz solar se extinguiu, o cimo do Leão Voador começou a brilhar intensamente. Tinha surgido uma estrela vermelha no ponto mais alto da montanha. Cintilava tenuemente mas era um foco luminoso de uma potência extraordinária porque conseguia cobrir toda a região com uma sinistra película encarnada. O céu noturno, por sua vez, transformara-se num fundo branco pontuado por constelações negras. E como se nada disto fosse suficiente para me convencer que algo de incrível estava a acontecer o interior da minha cabana também começou a brilhar. Através das duas janelas quadradas podia ver-se outra luz, esta de tom amarelo, suave, que nascia e morria intermitentemente como se estivesse a respirar. Caramba, se isto não era o princípio do fim dos tempos então o que é que seria? It's a FUBAR situation. Mesmo assim tinha que fazer alguma coisa. Não podia ficar especado no meio da neve à espera de sabe-se lá o quê. A minha cabana era o único sítio que podia providenciar-me alguma proteção. Portanto era para lá que iria. É verdade que algo pulsava no seu interior mas isso não podia ser pior que a infernal estrela que luzia no pico do Leão Voador. Além do mais não conseguia imaginar o que é que aquela coisa vermelha estaria a fazer à cabeça dos animais da floresta. Era melhor pegar na caçadeira e estar preparado para uma hipotética invasão zombie. De maneira que me pus a correr como um desvairado na direção da cabana.

“Vais morrer,” proferiu uma voz sem corpo.

“É possível,” respondi ofegante enquanto corria.

"Para quê resistir se eu estou a dizer que vais morrer?"

"Não sei..."

Espera lá. Estou a ouvir coisas... Parei.

"Quem falou," perguntei.

“Vais morrer."

Olhei em volta à procura da origem desta voz misteriosa. Porém nada. Ela continuou:

“Vais morrer. É só uma questão de tempo. Olha bem para o que está acontecer. Julgas mesmo que um reles homem poderá sobreviver à reorganização do universo?”

“Reorganização do universo? Mesmo que isso seja verdade eu tenho o direito de continuar a viver.”

"Tu... Ha ha ha ha ha! Continuar a viver? Ha ha ha ha ha! És mesmo palerma."

Eu não sabia com quem estava a falar mas sentia uma força maldosa a crescer dentro de mim. Parecia estar a consumir-me a alma. A consumir-me a alma... A consumir-me a alma... Não pode ser.

“Claro que pode. Não sobrará absolutamente nada deste mundo. Tudo desaparecerá. E tu também. Juntamente com a tua alma. E aviso-te já que não terás lugar no próximo que criarei. És muito aborrecido. Não te quero lá.”

“Então és tu a causa do que está acontecer?”

“Sim, sou. Surpreendido?”

A voz que ouvia era nitidamente feminina. Mas o seu timbre, em vez de me garantir que de facto se tratava de uma voz de mulher, lançava na minha mente um manto de dúvida. Podia ser qualquer coisa. Não tinha sexo definido.

“Sim, bastante surpreendido. Além disso não sei quem és nem como te chamas.” Se tinha que morrer ao menos que morresse bem informado. “Tens um nome não tens?”

“Cristina.”

“Cristina,” murmurei. "És, suponho, uma deusa..."

“Sim, talvez seja uma deusa. Sou o que tu quiseres. Agora acabemos com o palavreado. Já devias ter morrido e eu ainda tenho muito que fazer. Adeus.”

“Espera!”

Cristina não voltou a responder e eu deixei-me cair por terra. Faltava-me o ar. Estava mal-disposto e com vontade de vomitar. Não valia a pena fazer mais nada. O meu destino estava decidido por uma entidade superior. Morreria e nem a alma sobraria. E para que queria uma alma se eu não tinha lugar no novo mundo que surgirá das ruínas do velho? Fitei a neve e vomitei.

O interior da cabana continuava a luzir enquanto o pico mais alto do Leão Voador lançava a sua luz sanguínea no meu so-called paraíso. Mas ainda não tinha visto tudo. A estrela vermelha duplicou de tamanho três vezes e estabilizou, para logo a seguir aumentar a sua dimensão mais três vezes. Possivelmente preparava-se para consumir a terra, e a deusa Cristina queria que eu assistisse ao espetáculo na primeira fila, caso contrário já me teria arrancado os sentidos. O que eu daria para ouvir uma voz humana neste momento! Uma voz tola. Uma voz ingénua. Uma mentira reconfortante. A Bíblia. Se eu chegasse à cabana... Tinha que lá chegar. Reuni então as minhas últimas forças e avancei, arrastando-me pela neve.

A luz amarela continuava a piscar mas agora também ziguezagueava pelo interior da cabana. Eis que ouvi outra voz. Esta infantil e familiar.

“Um, dó, li, tá. Cara de amendoá. O meu nome é Niil...”

Uma rapariga cantava dentro da cabana... Comecei a gritar:

“Ei! Ajuda-me, Ajuda-me! Socorro! Estou cá fora.”

Porém ela não me ouviu e continuou a cantar:

“Eu sou filha de uma mãe que não me quer. Não me fala...”

Neste momento um jato amarelo de luz fulminante foi expelido de dentro da cabana, atravessando o telhado e desfazendo-o em pedaços. Com uma fúria imparável essa luz projetou-se em direção ao céu. A uma grande altitude. Do outro lado, a tal estrela vermelha consumia toda a montanha do Leão Voador. O feixe amarelo continuou a sua ascenção até rebentar, lançando dois raios de luz perpendiculares ao sítio da explosão. Tinha agora uma cruz gigante erguida sobre mim, que parecia estar a fazer frente ao sol sangrento que continuava a crescer a olhos vistos. Era como se estas forças estivessem a competir pelo domínio da terra tentando, cada uma por sua vez, iluminar o máximo de território possível. Uma de encarnado e outra de amarelo. O resultado deste embate pouco me importava pois tanto uma como a outra me engoliriam da mesma maneira. Divinas e tiranas. Totalmente indiferentes à minha vontade.

“A sério, poupem-me.”

A minha voz soou, uma última vez, sobre a terra. Uma voz que só Cristina ouviu, pois ela riu-se alegremente antes de devorar o que restava da minha alma.

FIM DA PARTE UM