Uma Pausa Para o Chá

“Joel, quanto mundo consegues meter na cabeça?”  

“Para lá de muito,” respondi sem muita convicção.

Wow. Não sei como consegues. Eu já tenho sérias dificuldades em mentalizar-me do meu corpo quanto mais do mundo.” 


Era uma observação interessante. Que daria para uma longa e filosófica conversa. Mas eu tinha assuntos mais prementes para tratar. De maneira que não estava com cabeça para lidar com os devaneios existenciais daquela pré-adolescente.

A Mariana tinha sugerido que eu encontraria dentro daquele livro, o tal Dogma, algo que me iria ajudar nos tempos vindouros. Uma vez que a sua eficácia já tinha sido comprovada pela minha ex-psicóloga, não tinha motivos para me pôr a duvidar.

“Vou ver então o que tem o livro lá dentro. Tens alguma ideia do que possa ser,” perguntei à Niil.

“Parvoíces da minha mãe.”

“Porque é que hão-de ser parvoíces?”

“Porque conheço a minha mãe. A nossa casa está cheia de tralha.”

“Que tipo de tralha?”

“Chaleiras. Chaleiras de todos os tamanhos e feitios. Faz coleção.”

“Eu não acredito que haja uma chaleira dentro do livro.”

“Olha que existem chaleiras bem pequenas.”

“Aposto contigo que não é uma chaleira.”  


"Já perdeste."

Lá porque a minha ex-psicóloga mantinha uma coleção de chaleiras, como hobby, isso não implicava que ela gostasse de chaleiras ao ponto de ter um espécime guardado dentro de um livro, no seu consultório. Levando a sério Niil, pensei que, quanto muito, encontraria umas embalagens de chá. Um que possuísse qualidades excecionais de relaxamento. Durante os períodos difíceis as maiores dificuldades que nos esperam, normalmente, têm origem nos nossos nervos. O nosso sistema nervoso tem um processador deveras temperamental que, infelizmente, se apraz a questionar a maior parte das tarefas que executamos naquilo que nos ensinaram a chamar de Vida Moderna. Isto trocado por miúdos, significa que vivemos a melhor das vidas e não estamos satisfeitos com isso. Como é isto possível? É um mistério. Apesar desta contradição, aparentemente insolúvel, que consome a alma do Homem Moderno, continuam a apresentar-nos esta vida como uma conquista civilizacional de grande importância. Definitiva, até! O fim da História, atreveram-se alguns a dizer! E que devemos agradecer e elogiar, efusivamente, os nossos queridos pais que nos ofertaram este produto do Progresso. Tudo bem. Prestemo-nos às tristes celebrações. Só porque não há mais nada para fazer. Porém a espada também foi uma grande conquista da civilização e isso, para a maioria dos mortais, não foi motivo de júbilo. Muito pelo contrário. Mas não pensemos mais porque o pensamento prejudica a produtividade. Continuemos a nossa história.    

Dentro do livro Dogma, As Verdades Intocáveis da Humanidade, fui encontrar dois objetos. Uma pistola e um ovo preto, polido, de pedra. Eu não consegui conceber em que é que aquele ovo de pedra me poderia ajudar mas quanto à pistola presumi que serviria para eu disparar sobre alguém, ou sobre algo. Uma ajuda altamente questionável. Em todo o caso o livro era falso e servia apenas de esconderijo para aqueles objetos que, segundo Mariana, a ajudavam em períodos difíceis. Mas que outra vida, além da de psicóloga, colecionadora de chaleiras e cidadã cumpridora, ela teria para precisar de uma pistola? Ainda por cima uma pistola não regulamentar. Eu tinha frequentado um curso de anti-terrorismo, obrigatório para todos os sincronizadores, onde tivera a oportunidade de consultar os catálogos das armas legais existentes, e de treinar com algumas, e esta que se me apresentava não constava nas listas. Portanto eu podia dizer, com alguma certeza, que aquela pistola, que tinha a aparência de uma Luger alemã, não era legal. Esta tinha um cano mais longo do que aquele, das tradicionais Luger, e possuía um apêndice cúbico afixado na extremidade inferior do cabo. Algo que à primeira vista parecia ser uma espécie de bateria. O que levantava a questão acerca do carregamento da arma. As balas por ali não entravam, como era suposto. Portanto não podia ser uma Luger, teria quanto muito o aspeto de uma. Não podia ser sequer uma arma de fogo. Pois não havia maneira de carregar a arma. Se calhar Niil tinha razão. A Rei tinha me oferecido uma chaleira. Retirei o ovo de pedra, acomodado numa cavidade cortada com a sua forma, no meio do livro, e guardei-o no bolso do casaco. De seguida peguei na pistola, mais para verificar o peso, do que outra coisa. Não tencionava levá-la para casa. Ia deixá-la no consultório. A ideia de andar com uma pistola, cujo funcionamento desconhecia, não me inspirava segurança. A Luger era extremamente leve para uma pistola. Se não fosse o contacto com o frio do metal diria que era feita de plástico. Mas não. Era feita de uma liga metálica polida ao ponto de refletir a envolvência, quase como um espelho. Portanto tinha nas mãos uma arma prateada, de um modelo que eu não conhecia. Um adereço digno de um filme de ficção científica. Apontei-a como se pretendesse disparar. Assim que ajustei a palma da minha mão direita ao cabo da arma senti uma picada na pele. Pensei que o cabo tinha algum defeito. No entanto, ao verificar o local onde eu me tinha picado constatei que a superfície era admiravelmente lisa. Beep. Naquele preciso momento a pistola emitiu um apito que foi seguido do surgimento de uma luz vermelha, em toda a superfície da tal bateria. Que passou imediatamente a piscar.

“Análise sanguínea terminada. Pode usar a arma.”

Então a Mariana previa que isto poderia acontecer. Mas com que intuito? Se eu estava autorizado a usar a arma, isso significava que ela teve a desfaçatez de arranjar, clandestinamente, uma amostra do meu ADN para introduzi-lo na pistola como ADN proprietário. As armas, produzidas atualmente, possuem todas um descodificador de ADN, para garantir que a arma não é usada por utilizadores não autorizados. Ao terminar a análise sanguínea a Luger modificada começou a emitir um zumbido intermitente, mesclado de guinchos eletrónicos.

“Alguma vez viste a Mariana a usar esta pistola?”

Virei-me na direção de Niil. Mas encontrei a secretária vazia. No resto do consultório também não havia sinal dela.

“A Rei não tem armas em casa.”

A voz de Niil veio insolitamente de cima.

“Só chaleiras.”

Olhei para o teto e encontrei a Niil suspensa sobre mim. Os seus pés estavam fixos no teto. O seu cabelo azul-celeste, ao contrário do que eu esperava, era puxado para cima como se a força da gravidade estivesse invertida. Era uma acrobacia incrível. Mas que para ela não passava de uma habilidade normal.


"Mais um dos teus truques?
 
Subitamente fui invadido por vertigens. Senti que todo o meu sangue estava a ser lançado na direção do meu cérebro. Convulsões tomaram-me o corpo por alguns instantes. Por fim vomitei. Da arma continuavam a sair ruídos indescritíveis. A bateria vermelha pulsava como se fosse um coração. Escusado será dizer que Niil nem pestanejou, perante o meu quase desfalecimento. Observava-me da mesma maneira que se observa um inseto aprisionado. Agora sei como se sente um pirilampo quando é apanhado e metido dentro de um frasco.

“Niil, temos que ter uma longa conversa sobre tudo isto. Sobre ti, sobre a tua mãe, sobre...”

“Olha, acho que a pistola está a começar a funcionar.”

A bateria que pulsava apagou-se e, por sua vez, a pistola tornou-se totalmente vermelha. Começou a resplandecer com grande intensidade. De seguida, a arma, como se tivesse adquirido a capacidade de emitir luz, envolveu-me a mão numa massa de luz encarnada. Era uma luz de uma espécie fluída e quente. E não se ficou pela mão. Avançou sem demora sobre o meu braço. Aquela luz viscosa e vermelha ameaçava devorar-me o braço, por completo.

“Acho que vais ficar sem braço.”

“Não brinques.”

“Vais ficar sem braço. O vermelho é guloso. Não gosto do vermelho.”

Realmente parecia que o objetivo daquela luz era mesmo avançar pelo meu braço fora, que estava tomado por uma dormência que me impedia de o mover. Eu não sabia o que fazer. Eu não sabia o que me estava a acontecer. E não estava a gostar da experiência. Presumi logo que iria morrer. Era o fim. Pressentia-o. A não ser que Niil interviesse. Ela tinha poderes especiais. Ela iria com certeza ajudar-me. Contra o que seria sensato eu confiava naquela rapariga.

“Ok, Joel, acalma-te. Joel, pensa assim. Não deixes a tua mente divagar no desconhecido. Mantém-te em território conhecido.”

Porra. Só me faltava esta. Niil era psicóloga como a mãe.

“Niil, não podes ajudar-me doutra maneira? Arranca-me a pistola da mão. É que não consigo mexe-la.”

“Népia. Morreria ao tocar no vermelho.”

Entretanto o vermelho já tinha envolvido o braço direito e avançava pelo peito em direção ao umbigo. O meu coração começou a bater com dificuldade. O caso estava mal parado. Niil não estava a brincar. O vermelho era mortal.

“Talvez se disparares consigas inverter o processo. O vermelho, que vês, é basicamente a energia do teu inconsciente que através dessa pistola está a verter para o exterior e sobre ti. Isso, em princípio, não te matará.”

“Em princípio... E no final?”

“Quando o inconsciente tomar conta de ti, morrerás. Mas experimenta disparar. Pode ser que resulte.”

“Como, se não consigo mexer a mão?”

Nesse instante a arma disparou. Pelos vistos, se me concentrasse, conseguia dar ordens à arma. O tiro esse não deixou qualquer marca na alcatifa. Estava portanto a lidar, novamente, com algo sobrenatural. O vermelho recuou. Mas fogo parecia ter lavrado no meu corpo, desde o peito até ao cotovelo do lado direito. O meu cérebro entrou em blackout, cai de joelhos e voltei a vomitar. Olhei o vómito espalhado no chão. Era composto sobretudo por bílis. Afastei-me daquele sítio pois começava a ficar enojado. Cambaleei até ao outro lado da sala e sentei-me com dificuldade no chão, de costas contra a parede. Niil seguiu-me caminhando pelo teto.

“Vês. Se consumires essa energia ela desaparece. Se fores disparando pode ser que recuperes a mão.”

“Não sei se resisto a mais um tiro.”

“Pois. Não sei o que a minha mãe tinha em mente quando ela disse que isto ajudaria. Onde é que está o ovo? Havia um ovo, não havia?”

Levei a mão esquerda ao bolso e apanhei aquele objeto bizarro. O ovo era frio. Muito diferente daquele fogo insano.

Entretanto começaram a cair pequenos flocos de neve. Niil desapareceu. Tal como o consultório. Joel Ilitch tinha agora à sua frente um descampado coberto de neve que se estendia até um rio em degelo. Um vulto assistia, na margem, à passagem das placas de gelo que corriam, dispersas, rio abaixo. Neste momento Joel perdeu os sentidos.