Eu Possuo O Conhecimento Do Mundo - Parte 3

P
erguntei-me como é que tinha sido possível eu não ter reparado nela. Recapitulemos. Alguém passeou-se mesmo debaixo do meu nariz, creio que até houve troca de bons dias, mas, por motivos que me transcendem, a sua passagem por mim teve o mesmo peso que teria uma pessoa desconhecida a atravessar na passadeira. Sucintamente foi isto que aconteceu. Por outras palavras, presenciei um acontecimento importante no qual não dispensei qualquer atenção, pelos menos a necessária para criar uma memória. O que significa que agi em modo automático numa situação onde uma vida humana estava em causa, contudo, desligando-me da mesma. Não é coisa de pouca monta. Eliminar vidas com o pensamento. E eu não quero pertencer aos X-Men. Isto tem que ter uma explicação. Ora vejamos. Eu tomo uma certa normalidade como garantida. O sol nasce, a lua nasce, eu adormeço, eu acordo, etc. De maneira que penso pouco ou nada nestes acontecimentos naturais. Certo? E o Homem sendo o ser absurdo que é, considerando aquilo que o rodeia natural, e ele uma aberração, trata de ocultar as coisas mais naturais, e o são porque estão em todo o lado, para se manter intacto na sua absurdez. Must be the reason why i'm king of my castle. E assim que se aprende a gostar do lado absurdo da humanidade não há nada que se possa fazer até que o veneno perca a potência. Must be the reason why i'm free in my trapped soul. Estão a acompanhar-me? E o que se perde ao vivermos dentro desta Ideia? Futuros. Muitos Futuros. A sério, true story. Mas que se pode fazer? Nada. Pois o que tem de ser tem muita força. Felizmente o meu futuro, por agora, está a salvo. E isso é que interessa. E este meu futuro começou o seu processo de recuperação quando o vizinho do primeiro andar me confidenciou que a Doutora Mariana era uma mulher "Muito" bonita e "Muito" simpática, e que todos no prédio gostavam "Muito" dela.


“Portanto, nada mais, nada menos, que uma mulher Muito interessante.”
 

“Muito mesmo, Sr. Joel.”
 

Depois de tamanha insistência adverbial, aplicada num só sujeito, seria difícil eu não começar a tomar "Muito" a sério a existência da Doutora Mariana.
 

“Mas, Sr. Mário, como é possível eu nunca a ter visto?”
 

“Sr. Joel, você hoje está cheio de piada.”
 

Eu simplesmente o cumprimentara perguntando pelos seus ossos e ele começou a rir-se que nem um perdido. Convenhamos que os idosos são obrigados a ter um sentido de humor bastante negro atendendo à sua proximidade com a morte.
 

“Então não a viu nas reuniões de condomínio?”
 

“Não, não a vi.”
 

“Talvez não a tenha identificado porque a Doutora Mariana, para o consultório, vai toda aperaltada enquanto que nas reuniões ela costuma aparecer vestida como uma jovem estudante. De jeans, ténis e de casaco leve de desporto sobre uma t-shirt de uma banda de música rock.”
 

"O casaco era da Adidas?"

"Adivinhou, Sr. Joel."
 

Há que admirar a atenção que o vizinho prestara ao vestuário da Doutora. Quem diria que tínhamos um taradão deste calibre a viver num prédio de pessoas de bem!? Estou a exagerar. Afinal, um homem com a idade dele, que outra coisa pode fazer, que não seja reparar em mulheres jovens e dar largas à imaginação? Não dizem que na velhice voltamos a ser crianças? Parece-me que não são os velhos que são tarados mas sim os petizes. Na escola onde tirei o secundário este fenómeno, ou este síndrome que cunhei de Síndrome de DOM*, era particularmente visível. Estes aristocratas da terceira idade punham-se sentados nos muros, nos bancos, nos carros, nos cafés, mesmo à cara podre, a prestar atenção às jovens que passavam e a comentar, pois claro, o jogo do seu clube de futebol favorito. Dias inteiros assim, extremamente atentos aos mínimos detalhes e às curvas... Das roupas delas porque imagino que não houvesse só bola na cabeça destes homens. Talvez até era tudo gente somente interessada nas últimas tendências da moda. Quem sabe? Portanto, nem comentei a insólita atenção dada às roupas da Doutora Mariana, e deixei-o dar o gosto à língua, visto ser um viúvo de oitenta e nove anos, sem familiares no país, e com a média de idades no prédio a rondar os quarenta o Sr. Mário devia ser respeitado como o ancião da casa.
 

“É verdade que ela nunca esteve numa reunião até ao fim. Ficava apenas o tempo necessário para assinar a folha de presenças, que você deixava, muito atenciosamente, preparada com antecedência, e para trocar umas palavras com os moradores. Depois dizia que tinha um assunto urgente e saía indicando que depois falava consigo. Mas creio que na última até o encontrou quando ia a sair. Pois foi. Foi aí que ela sugeriu a empresa de gestão de condomínios. Não se lembra?”
 

“ Claro, A Rainha do Lar. Claro como água,” tratei de dizer, com o maior desinteresse possível.
 

“Então, então, não é preciso guardar rancor à Doutora Mariana. A Rainha do Lar só veio facilitar a vida aos moradores do prédio.” 

A nossa conversa continuou durante mais uma hora contendo vários relatos sobre as aparições fantasmagóricas da minha psicóloga vestida com t-shirts de bandas de música rock. As t-shirts que, em si, são outro mistério a juntar ao caso Mariana, pois como é que ele sabia se eram bandas de rock, jazz ou pop? Não conseguia imaginá-lo a ouvir outra coisa sem ser a discografia completa de Demis Roussos. Goodbye My Love em repeat eterno pela sua falecida esposa. Previsivelmente o Sr. Mário não conseguiu elucidar-me quanto às bandas das t-shirts. E da minha parte não consegui elucidá-lo que um doutor é alguém que tirou o doutoramento na universidade. O que não é o caso da psicóloga Mariana, pois ela não possui qualquer diploma, pendurado na parede, que comprove o seu grau de Doutora como manda a norma. E até ver nem um simples diploma de licenciatura ela tem em exibição. Paredes lisas como os seus cabelos. Suponho que não goste de se exibir, o que não lhe retira o talento para a prática. Por isso que se danem os comprovativos. 

Para acentuar ainda mais a aura de mistério, emanada por esta mulher, o andar onde ela se instalou também é misterioso. Na vida deste edifício, ela trata-se efetivamente da única ocupante do nono andar que na altura da minha mudança para cá ainda se encontrava desocupado. Tinha eu os meus trinta e um. Isto há sete anos. Nesse período só a minha psicóloga se mostrou interessada no andar, mais precisamente no nono direito onde ela instalou o seu consultório. Isso significa que o nono esquerdo continua por ocupar desde a construção do edifício. Trata-se de um bom apartamento, num condomínio moderno, no centro da cidade, vazio. Virgem. O que é estranho. Mas voltando ao nono direito. Fazem precisamente este ano quatro anos desde que a psicóloga Mariana Isabel do Rosário começara a dar consultas neste prédio sem que eu soubesse. Ou seja, andei a encontrar-me com ela desde os meus trinta e quatro, sem todavia lhe reconhecer a existência.
 

Hoje estou especialmente pensativo. Para quê relembrar as circunstâncias incomuns que rodeiam a vida desta psicóloga? Posso, porventura, posicionar-me como o rei da normalidade e ditar juízos sobre o que é comum e incomum, quando o meu trabalho consiste em desmistificar essas fronteiras cujos os credos de antigamente souberam explorar em proveito próprio? Para mais o único aspeto bizarro, neste caso, trata-se da minha flagrante ocultação mental da existência de uma pessoa. E isso acontece a toda a gente quando se anda com a cabeça na lua. Portanto não é caso para tanta angústia. Só que quando o que acontece aos outros acontece a nós é sempre um bicho de sete cabeças. Como se fossemos surpreendidos pela existência do nosso eu-estúpido, popularmente chamado de ego. Numa das sessões surgiu a oportunidade de falar disso mas como de costume o assunto foi rematado com uma banalidade qualquer e uma promessa de retomarmos a conversa noutra ocasião. Se era hábito inconsciente dela, ou técnica terapêutica, de deixar conversas a meio, ainda estava por descobrir.

*DOM (Dirty Old Man)

Eu Possuo O Conhecimento Do Mundo - Parte 2

C
onfesso que fiquei bastante surpreendido em encontrar uma página onde eles se encavalitavam uns em cima dos outros a competir pela minha atenção. Desde quando a psicologia se tornara numa profissão assim tão desejável? Em quantidade quase que chegam ao calcanhares dos astrólogos e cartomantes. Entre uns e outros penso que a diferença essencial está no estilo, pois se o mercado onde operam é sensivelmente o mesmo, já o esoterismo tem um charme ancestral que a psicologia moderna não consegue conquistar. E o feliz psicólogo da minha escolha foi mesmo aquele que se encontrava o mais perto possível da minha residência. Por destino, ou mera coincidência, havia um consultório precisamente no prédio onde eu morava. Longe de pensar que seria demasiado bom para ser verdade, considerei até que era bastante conveniente. Assim escusava de andar às voltas, depois de sair do trabalho, só para ter uma conversa que poderia dar em nada. Conheci algumas pessoas que recorreram a psicólogos durante períodos difíceis das suas vidas mas, por azar ou vontade própria, acabaram a tomar ansiolíticos e soporíferos ao constatarem que o palavreado pouco as ajudava. Se era para acabar no consumo de substâncias julgo que optaria por uns copos com os colegas lá do trabalho. Definitivamente a psicologia está longe de ser uma ciência exata com resultados garantidos. Porém eu estava decidido em não desistir se a primeira tentativa corresse assim para o torto. Haveria de encontrar um psicólogo que valesse o seu diploma. O que aconteceu é que foi mesmo à primeira, e não descobri um, mas uma psicóloga. Inclusive já tínhamos partilhado o elevador em algumas ocasiões. Mas nesses momentos em que partilhámos o espaço, separados por poucos centímetros, eu não reparei nela. Verídico. Ainda hoje não sei explicar como é que isso aconteceu. Logo a mim, que conheço todos moradores do prédio. Logo a mim, que levo a sério as minhas obrigações comunais. Tão seriamente as levo que fui, por cinco vezes consecutivas, eleito o responsável pelo condomínio. Eventualmente fui destronado pela empresa de gestão de condomínios A Rainha do Lar. Fiquei profundamente amargurado. Isto porque tinha um certo prazer em mudar a lâmpada da porta do prédio. Fazia-o possuído por um zelo que se pode apelidar de pouco usual. Um zelo, como defini-lo? Exato, um zelo de militante. Afinal, caro tovarich, o bom funcionamento da sociedade está nas nossas mãos e depende de pequenos nadas como trocar lâmpadas. E considero isso reconfortante. Verdadeira música para os meus ouvidos. Pequenos nadas, como arejar a casa, limpar o pó, lavar a loiça, estender a roupa, despejar o lixo e outras banalidades domésticas do género, fazem me sentir que pertenço a algo, que eu importo. De maneira que nunca poupava nas lâmpadas. Escolhia sempre a melhor marca que havia na prateleira do supermercado e mantinha um stock repleto delas, para a eventualidade de alguma se fundir. Agora que penso nisso, o sistema elétrico devia ter algum problema pois aquela luz fundia-se mais vezes do que seria de esperar. Será que foi isso que propiciou o recrutamento d'A Rainha do Lar? Realmente podia ter chamado um eletricista para verificar a instalação elétrica. Mas é tarde para pensar nisso. As coisas mudaram. As coisas mudam. Simplesmente. Não é que se ganhe muito com mudanças mas como somos bichos insatisfeitos por natureza não há nada que se possa fazer para contrariar as mudanças, mesmo aquelas que não foram pedidas. Vivemos numa permanente Nouvelle Vague. Agora o que não consigo conceber é isso se ter passado sem que eu me tenha apercebido das movimentações hostis que se perpetravam na escuridão. Ser apanhado desprevenido mexe realmente comigo. Fico histérico. Escusado será dizer que o caso está intrinsecamente ligado com a entrada em cena da minha psicóloga e pode-se considerar um daqueles casos paranormais que nunca vai ser explicado. Porquê? Porque me irão considerar louco no primeiro instante em que eu abrir a boca para tentar explicar que uma mulher, que nunca tinha visto mais gorda, apesar de já a ter visto mais que uma vez, sem contudo reparar nela, e que agora é minha psicóloga, fez-me aquilo e aqueloutro, e graças a ela fiquei sem a minha fiel lâmpada do hall de entrada, acontecimento que me lançou numa depressão. Como é que é? Depois quem é que traz o pão para casa? É que o meu trabalho exige uma cabeça limpa e arrumada. Senão, chapéu! Estão a ver? Histérico. No entanto achei melhor deixar passar este episódio de cegueira e fingir que estava inteirado de tudo desde o princípio. É que a pessoa que sugeriu A Rainha do Lar foi precisamente ela, a minha psicóloga. Os restantes condóminos dizem que aprovei imediatamente a ideia pois estava farto de mudar a lâmpada do hall de entrada. Digamos que isso só podia ser mentira porque, em primeiro, eu até tinha orgulho em ser o guardião da lâmpada do hall de entrada e, em segundo, porque a Mariana Isabel do Rosário nunca tinha posto os pés numa reunião de condóminos. Mas quando fui verificar a folha de presenças lá estava o nome dela. Escrito numa letra perfeitamente legível. Aliás ela marcou presença em todas as reuniões desde que instalara o seu consultório no nono andar direito.

Eu Possuo O Conhecimento Do Mundo – Parte 1


A
panhei o elevador e preparei-me para mais uma consulta. Desde que me decidira a consultar um destes auto-intitulados salvadores da humanidade que nunca tinha chegado atrasado a nenhuma sessão. Hoje não seria excepção. Confesso que este ritual de deixar correr as águas me faz bem. Além disso sinto prazer em vê-la. E o prazer que retiramos das coisas que fazemos é uma justificação bastante válida. Não é que eu seja um freak das emoções mas não posso negar certas inclinações que me fazem constatar que existe um bright side of life. E como de momento não encontro o lado negativo destas visitas, vou aproveitar a viagem que se mostra agradável. Pois se todas as viagens nos transformam de alguma forma, nem todas são um sossego. Obviamente que existirá um lado negativo nestas sessões; apenas ainda não o desvendei. Aposto que está escondido, à espera de me pregar uma rasteira. Normalmente é o que acontece quando não vemos os lados todos da questão. Às vezes penso se o mesmo sentimento de bem-estar me tomaria se as consultas fossem com um psicólogo, se fossem com um homem? Quem sabe? Se ele fosse um mestre exímio a lidar com a psique humana talvez me fizesse esquecer os sexismos de algibeira. Se recuar no tempo, e passar em revista os meus trinta e oito anos, não encontro qualquer homem com quem tenha criado algo que se possa chamar uma relação de intimidade. A indiferença total reina nas minhas relações com o sexo masculino. Mesmo nas amizades mais sinceras, que cultivei em certas fases da vida, não me parecem dignas da minha memória. Tanto que só a muito custo consigo arrancar algumas imagens desses tempos. Portanto os amigos não importam, pelo menos para mim, e digamos que já tenho um conjunto razoável de experiências que me permitem dizer que se trata de uma verdade pessoal. A dificuldade que eu tenho em trazer à memória estes companheiros de guerra contrasta com a facilidade com que eu recupero as mulheres. Mesmo aquelas cuja intimidade é, foi, e será, zero. Provavelmente isto trata-se de um complexo qualquer que a minha psicóloga me faz o favor de ocultar. É deveras uma mulher com tato. Se eu conhecesse as características do meu complexo começaria logo a fazer conjunturas disparatadas para me acalmar e assegurar que eu sou a mais normal das pessoas, o que reduziria a eficácia das consultas. A razão é mesmo um bálsamo que cura tudo, ao mesmo tempo que nos mantém doentes. Se a exercitarmos regularmente pudemos muito bem criar uma vida virtual que só existe para nós. E é garantido que ela será perfeita como num conto de fadas. Claro que esta habilidade avançada de ilusionismo parece não estar ao alcance de todos, senão como é que se explica a necessidade, algo doentia, das pessoas realizarem os seus desejos materialmente? Multidões que projetam as mais mirabolantes fantasias em roupas, viagens, amores, carros, comidas, e outros fetiches, para depois caírem nas mais negras depressões ao descobrirem que nunca ficam satisfeitas com absolutamente nada. Felizmente algumas pessoas iluminadas aprendem com as experiências e chegam à conclusão que não existe objeto algum, real ou imaginário, que nos satisfaça. Suponho até que se trata de uma condição necessária à vida, a insatisfação. É como se esta anomalia cósmica fosse a única força capaz de nos arrancar da cama todos os dias. É como se fosse, mas não é, porque na realidade cada um tem as suas ideias em relação a isto. Não se trata de algo consensual como a força da gravidade. O certo é que as manifestações do seu poder são semelhantes em qualquer pessoa. Por isso, para mim, tem sentido esta força que eu chamo de insatisfação, e sempre que me debruço nos seus mistérios assusto-me com o seu poder. É verdadeiramente cruel na sua imensa maldade. Consigo imaginar-me em várias circunstâncias onde esta força sem deus me atiraria, como se nada fosse, para situações que não me trariam qualquer tipo de alegria. O recusar do amor de uma mulher em troca de uma aventura idiota, só para me provar capaz de atos heróicos, é uma delas. Sabotar propositadamente uma vida pacata e segura é outra, ou então o ser incapaz de aguentar temporariamente um trabalho aborrecido em nome de uma recompensa futura. Ou mesmo ficar no calor da cama durante uma manhã de inverno, ou passar o dia a apanhar sol, sem no final me sentir mal pela minha justa preguiça. Admiravelmente há sempre algo que me vem assombrar os melhores momentos, que nem nuvem cinzenta no céu de maio. E foi esta força chamada insatisfação que me pôs no caminho do psicólogo. A escolha deste conselheiro não foi muito difícil, pois como é costumeiro em todas as decisões que afetam a vida de um homem para lá do razoável, foi absurdamente simples. Bastou-me pesquisar na net por psicólogos e escolher aquele que se encontrava mais perto da minha residência.