P
erguntei-me como é que tinha sido possível eu não ter reparado nela. Recapitulemos. Alguém passeou-se mesmo debaixo do meu nariz, creio que até houve troca de bons dias, mas, por motivos que me transcendem, a sua passagem por mim teve o mesmo peso que teria uma pessoa desconhecida a atravessar na passadeira. Sucintamente foi isto que aconteceu. Por outras palavras, presenciei um acontecimento importante no qual não dispensei qualquer atenção, pelos menos a necessária para criar uma memória. O que significa que agi em modo automático numa situação onde uma vida humana estava em causa, contudo, desligando-me da mesma. Não é coisa de pouca monta. Eliminar vidas com o pensamento. E eu não quero pertencer aos X-Men. Isto tem que ter uma explicação. Ora vejamos. Eu tomo uma certa normalidade como garantida. O sol nasce, a lua nasce, eu adormeço, eu acordo, etc. De maneira que penso pouco ou nada nestes acontecimentos naturais. Certo? E o Homem sendo o ser absurdo que é, considerando aquilo que o rodeia natural, e ele uma aberração, trata de ocultar as coisas mais naturais, e o são porque estão em todo o lado, para se manter intacto na sua absurdez. Must be the reason why i'm king of my castle. E assim que se aprende a gostar do lado absurdo da humanidade não há nada que se possa fazer até que o veneno perca a potência. Must be the reason why i'm free in my trapped soul. Estão a acompanhar-me? E o que se perde ao vivermos dentro desta Ideia? Futuros. Muitos Futuros. A sério, true story. Mas que se pode fazer? Nada. Pois o que tem de ser tem muita força. Felizmente o meu futuro, por agora, está a salvo. E isso é que interessa. E este meu futuro começou o seu processo de recuperação quando o vizinho do primeiro andar me confidenciou que a Doutora Mariana era uma mulher "Muito" bonita e "Muito" simpática, e que todos no prédio gostavam "Muito" dela.“Portanto, nada mais, nada menos, que uma mulher Muito interessante.”
“Muito mesmo, Sr. Joel.”
Depois de tamanha insistência adverbial, aplicada num só sujeito, seria difícil eu não começar a tomar "Muito" a sério a existência da Doutora Mariana.
“Mas, Sr. Mário, como é possível eu nunca a ter visto?”
“Sr. Joel, você hoje está cheio de piada.”
Eu simplesmente o cumprimentara perguntando pelos seus ossos e ele começou a rir-se que nem um perdido. Convenhamos que os idosos são obrigados a ter um sentido de humor bastante negro atendendo à sua proximidade com a morte.
“Então não a viu nas reuniões de condomínio?”
“Não, não a vi.”
“Talvez não a tenha identificado porque a Doutora Mariana, para o consultório, vai toda aperaltada enquanto que nas reuniões ela costuma aparecer vestida como uma jovem estudante. De jeans, ténis e de casaco leve de desporto sobre uma t-shirt de uma banda de música rock.”
"O casaco era da Adidas?"
"Adivinhou, Sr. Joel."
Há que admirar a atenção que o vizinho prestara ao vestuário da Doutora. Quem diria que tínhamos um taradão deste calibre a viver num prédio de pessoas de bem!? Estou a exagerar. Afinal, um homem com a idade dele, que outra coisa pode fazer, que não seja reparar em mulheres jovens e dar largas à imaginação? Não dizem que na velhice voltamos a ser crianças? Parece-me que não são os velhos que são tarados mas sim os petizes. Na escola onde tirei o secundário este fenómeno, ou este síndrome que cunhei de Síndrome de DOM*, era particularmente visível. Estes aristocratas da terceira idade punham-se sentados nos muros, nos bancos, nos carros, nos cafés, mesmo à cara podre, a prestar atenção às jovens que passavam e a comentar, pois claro, o jogo do seu clube de futebol favorito. Dias inteiros assim, extremamente atentos aos mínimos detalhes e às curvas... Das roupas delas porque imagino que não houvesse só bola na cabeça destes homens. Talvez até era tudo gente somente interessada nas últimas tendências da moda. Quem sabe? Portanto, nem comentei a insólita atenção dada às roupas da Doutora Mariana, e deixei-o dar o gosto à língua, visto ser um viúvo de oitenta e nove anos, sem familiares no país, e com a média de idades no prédio a rondar os quarenta o Sr. Mário devia ser respeitado como o ancião da casa.
“É verdade que ela nunca esteve numa reunião até ao fim. Ficava apenas o tempo necessário para assinar a folha de presenças, que você deixava, muito atenciosamente, preparada com antecedência, e para trocar umas palavras com os moradores. Depois dizia que tinha um assunto urgente e saía indicando que depois falava consigo. Mas creio que na última até o encontrou quando ia a sair. Pois foi. Foi aí que ela sugeriu a empresa de gestão de condomínios. Não se lembra?”
“ Claro, A Rainha do Lar. Claro como água,” tratei de dizer, com o maior desinteresse possível.
“Então, então, não é preciso guardar rancor à Doutora Mariana. A Rainha do Lar só veio facilitar a vida aos moradores do prédio.”
A nossa conversa continuou durante mais uma hora contendo vários relatos sobre as aparições fantasmagóricas da minha psicóloga vestida com t-shirts de bandas de música rock. As t-shirts que, em si, são outro mistério a juntar ao caso Mariana, pois como é que ele sabia se eram bandas de rock, jazz ou pop? Não conseguia imaginá-lo a ouvir outra coisa sem ser a discografia completa de Demis Roussos. Goodbye My Love em repeat eterno pela sua falecida esposa. Previsivelmente o Sr. Mário não conseguiu elucidar-me quanto às bandas das t-shirts. E da minha parte não consegui elucidá-lo que um doutor é alguém que tirou o doutoramento na universidade. O que não é o caso da psicóloga Mariana, pois ela não possui qualquer diploma, pendurado na parede, que comprove o seu grau de Doutora como manda a norma. E até ver nem um simples diploma de licenciatura ela tem em exibição. Paredes lisas como os seus cabelos. Suponho que não goste de se exibir, o que não lhe retira o talento para a prática. Por isso que se danem os comprovativos.
Para acentuar ainda mais a aura de mistério, emanada por esta mulher, o andar onde ela se instalou também é misterioso. Na vida deste edifício, ela trata-se efetivamente da única ocupante do nono andar que na altura da minha mudança para cá ainda se encontrava desocupado. Tinha eu os meus trinta e um. Isto há sete anos. Nesse período só a minha psicóloga se mostrou interessada no andar, mais precisamente no nono direito onde ela instalou o seu consultório. Isso significa que o nono esquerdo continua por ocupar desde a construção do edifício. Trata-se de um bom apartamento, num condomínio moderno, no centro da cidade, vazio. Virgem. O que é estranho. Mas voltando ao nono direito. Fazem precisamente este ano quatro anos desde que a psicóloga Mariana Isabel do Rosário começara a dar consultas neste prédio sem que eu soubesse. Ou seja, andei a encontrar-me com ela desde os meus trinta e quatro, sem todavia lhe reconhecer a existência.
Hoje estou especialmente pensativo. Para quê relembrar as circunstâncias incomuns que rodeiam a vida desta psicóloga? Posso, porventura, posicionar-me como o rei da normalidade e ditar juízos sobre o que é comum e incomum, quando o meu trabalho consiste em desmistificar essas fronteiras cujos os credos de antigamente souberam explorar em proveito próprio? Para mais o único aspeto bizarro, neste caso, trata-se da minha flagrante ocultação mental da existência de uma pessoa. E isso acontece a toda a gente quando se anda com a cabeça na lua. Portanto não é caso para tanta angústia. Só que quando o que acontece aos outros acontece a nós é sempre um bicho de sete cabeças. Como se fossemos surpreendidos pela existência do nosso eu-estúpido, popularmente chamado de ego. Numa das sessões surgiu a oportunidade de falar disso mas como de costume o assunto foi rematado com uma banalidade qualquer e uma promessa de retomarmos a conversa noutra ocasião. Se era hábito inconsciente dela, ou técnica terapêutica, de deixar conversas a meio, ainda estava por descobrir.
*DOM (Dirty Old Man)
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