EPCM - Ch. 25 - Quarto Impacto (4/4)

A
ssim que a luz solar se extinguiu, o cimo do Leão Voador começou a brilhar intensamente. Tinha surgido uma estrela vermelha no ponto mais alto da montanha. Cintilava tenuemente mas era um foco luminoso de uma potência extraordinária porque conseguia cobrir toda a região com uma sinistra película encarnada. O céu noturno, por sua vez, transformara-se num fundo branco pontuado por constelações negras. E como se nada disto fosse suficiente para me convencer que algo de incrível estava a acontecer o interior da minha cabana também começou a brilhar. Através das duas janelas quadradas podia ver-se outra luz, esta de tom amarelo, suave, que nascia e morria intermitentemente como se estivesse a respirar. Caramba, se isto não era o princípio do fim dos tempos então o que é que seria? It's a FUBAR situation. Mesmo assim tinha que fazer alguma coisa. Não podia ficar especado no meio da neve à espera de sabe-se lá o quê. A minha cabana era o único sítio que podia providenciar-me alguma proteção. Portanto era para lá que iria. É verdade que algo pulsava no seu interior mas isso não podia ser pior que a infernal estrela que luzia no pico do Leão Voador. Além do mais não conseguia imaginar o que é que aquela coisa vermelha estaria a fazer à cabeça dos animais da floresta. Era melhor pegar na caçadeira e estar preparado para uma hipotética invasão zombie. De maneira que me pus a correr como um desvairado na direção da cabana.

“Vais morrer,” proferiu uma voz sem corpo.

“É possível,” respondi ofegante enquanto corria.

"Para quê resistir se eu estou a dizer que vais morrer?"

"Não sei..."

Espera lá. Estou a ouvir coisas... Parei.

"Quem falou," perguntei.

“Vais morrer."

Olhei em volta à procura da origem desta voz misteriosa. Porém nada. Ela continuou:

“Vais morrer. É só uma questão de tempo. Olha bem para o que está acontecer. Julgas mesmo que um reles homem poderá sobreviver à reorganização do universo?”

“Reorganização do universo? Mesmo que isso seja verdade eu tenho o direito de continuar a viver.”

"Tu... Ha ha ha ha ha! Continuar a viver? Ha ha ha ha ha! És mesmo palerma."

Eu não sabia com quem estava a falar mas sentia uma força maldosa a crescer dentro de mim. Parecia estar a consumir-me a alma. A consumir-me a alma... A consumir-me a alma... Não pode ser.

“Claro que pode. Não sobrará absolutamente nada deste mundo. Tudo desaparecerá. E tu também. Juntamente com a tua alma. E aviso-te já que não terás lugar no próximo que criarei. És muito aborrecido. Não te quero lá.”

“Então és tu a causa do que está acontecer?”

“Sim, sou. Surpreendido?”

A voz que ouvia era nitidamente feminina. Mas o seu timbre, em vez de me garantir que de facto se tratava de uma voz de mulher, lançava na minha mente um manto de dúvida. Podia ser qualquer coisa. Não tinha sexo definido.

“Sim, bastante surpreendido. Além disso não sei quem és nem como te chamas.” Se tinha que morrer ao menos que morresse bem informado. “Tens um nome não tens?”

“Cristina.”

“Cristina,” murmurei. "És, suponho, uma deusa..."

“Sim, talvez seja uma deusa. Sou o que tu quiseres. Agora acabemos com o palavreado. Já devias ter morrido e eu ainda tenho muito que fazer. Adeus.”

“Espera!”

Cristina não voltou a responder e eu deixei-me cair por terra. Faltava-me o ar. Estava mal-disposto e com vontade de vomitar. Não valia a pena fazer mais nada. O meu destino estava decidido por uma entidade superior. Morreria e nem a alma sobraria. E para que queria uma alma se eu não tinha lugar no novo mundo que surgirá das ruínas do velho? Fitei a neve e vomitei.

O interior da cabana continuava a luzir enquanto o pico mais alto do Leão Voador lançava a sua luz sanguínea no meu so-called paraíso. Mas ainda não tinha visto tudo. A estrela vermelha duplicou de tamanho três vezes e estabilizou, para logo a seguir aumentar a sua dimensão mais três vezes. Possivelmente preparava-se para consumir a terra, e a deusa Cristina queria que eu assistisse ao espetáculo na primeira fila, caso contrário já me teria arrancado os sentidos. O que eu daria para ouvir uma voz humana neste momento! Uma voz tola. Uma voz ingénua. Uma mentira reconfortante. A Bíblia. Se eu chegasse à cabana... Tinha que lá chegar. Reuni então as minhas últimas forças e avancei, arrastando-me pela neve.

A luz amarela continuava a piscar mas agora também ziguezagueava pelo interior da cabana. Eis que ouvi outra voz. Esta infantil e familiar.

“Um, dó, li, tá. Cara de amendoá. O meu nome é Niil...”

Uma rapariga cantava dentro da cabana... Comecei a gritar:

“Ei! Ajuda-me, Ajuda-me! Socorro! Estou cá fora.”

Porém ela não me ouviu e continuou a cantar:

“Eu sou filha de uma mãe que não me quer. Não me fala...”

Neste momento um jato amarelo de luz fulminante foi expelido de dentro da cabana, atravessando o telhado e desfazendo-o em pedaços. Com uma fúria imparável essa luz projetou-se em direção ao céu. A uma grande altitude. Do outro lado, a tal estrela vermelha consumia toda a montanha do Leão Voador. O feixe amarelo continuou a sua ascenção até rebentar, lançando dois raios de luz perpendiculares ao sítio da explosão. Tinha agora uma cruz gigante erguida sobre mim, que parecia estar a fazer frente ao sol sangrento que continuava a crescer a olhos vistos. Era como se estas forças estivessem a competir pelo domínio da terra tentando, cada uma por sua vez, iluminar o máximo de território possível. Uma de encarnado e outra de amarelo. O resultado deste embate pouco me importava pois tanto uma como a outra me engoliriam da mesma maneira. Divinas e tiranas. Totalmente indiferentes à minha vontade.

“A sério, poupem-me.”

A minha voz soou, uma última vez, sobre a terra. Uma voz que só Cristina ouviu, pois ela riu-se alegremente antes de devorar o que restava da minha alma.

FIM DA PARTE UM


Quarto Impacto (3.1/4)

O
espetáculo celeste continuava o seu programa indiferente à angústia telúrica da minha alma. O sol lançava a sua luz vermelha sobre o pico do Leão Voador e o rio corria que nem serpente negra sibilando alegremente o caos. Agora o que é que se faz quando a terra perde uma das suas facetas, a ordem, antes da última luz do dia se extinguir? Tal como uma pessoa que nunca foi ensinada a agir em caso de catástrofe, das duas uma, ou entra-se em pânico ou aguenta-se estoicamente. Em ambos o casos a natureza humana, quando posta em xeque, é incapaz de agir em função da sua salvação terrena. Assim se percebe a utilidade das nossas inúmeras mil e uma noites. É que idealmente gostaríamos de ser estúpidos como as ovelhas e com isso garantirmos o nosso lugar num mundo melhor. E menos dado a repentinas entropias. Em suma, as histórias da carochinha são uma perfeita inutilidade. É preferível continuarmos a ter os nossos simulacros de terramotos para sabermos o que fazer e com isso, efetivamente, nos safarmos do que esperar por uma refeição grátis.

Continua...

Quarto Impacto (3/4)

O ar tinha ficado mais pesado. A dificuldade em respirar acusava isso. Da floresta, o som harmonioso do esvoaçar das folhas, entrecortado por estalidos, tinha sido substituído por puro silêncio. O barulhar das árvores tinha cessado lançando toda a região numa tranquilidade lunar onde nem o chilrear de uma qualquer ave cantante se ouvia. Isto não podia ser bom. Mas visto que eu não podia fazer nada para impedir a ocorrência de fenómenos sobrenaturais, o melhor mesmo era recolher-me ao ninho e esperar. Portanto voltaria para a cabana como planeado.

Dei uma passada em frente. E mais outra e ainda mais outra. Três passadas foram dadas. Quatro, cinco, seis, sete, mas, coisa estranha, as botas sobre a neve não estavam a emitir qualquer ruído. Voltei a dar um passo... Novamente silêncio. Era só o que me faltava. Pressionei a sola da bota com mais força. A neve teria de ceder e produzir algum som. Era essa a lei. Mas nada. Olhei atentamente para o chão, para verificar se de facto pisava neve. E claro que pisava. Só que o som... Pufff! Que diabo, o que se passará? Levantei o olhar mais uma vez na direção da floresta e confirmei que as árvores continuavam no mesmo sítio. Não se tinham mexido nem se reorganizado misteriosamente. O céu continuava nas alturas tal como Astérix desejaria que ficasse até ao fim dos tempos. De maneira que estava tudo no lugar exceto o som. Menos mal. No fim de contas, num mundo sem som, a única garantia que se possui é a imaginação. E é bom que a minha ideia da realidade esteja correta. Já o rio, por sua vez, parecia indiferente a este desconcerto. Aparentemente continuava a sussurrar a mesma canção de sempre. Ou será que? Deixa-me cá ouvi-lo com atenção.

Na verdade algo corria juntamente com a água. Mas não na sua direção. Em todas as direções! Algo semelhante à estática de um rádio mal sintonizado. Uma faixa de ruído composta por beeps e glitches que volitavam por todo o lado. Sons desordenados, caóticos, mas claramente individualizados. Eram os sons da Terra que se tinham separado da sua origem, e sem leis físicas que os ordenassem eles transformavam-se livremente.

Joel tinha tomado como certo que o modem que descodificava os sinais deste mundo era o Homem e exclusivamente ele. Pois bem, ele irá descobrir que essa história está mal contada. Ou, pelo menos, mesmo que ele não venha a descobrir absolutamente nada, esperemos que ele comece a pensar no assunto.

Afinal quem é que vos meteu na cabeça que só o Homem é que pode manipular as leis da natureza em seu proveito?

Continua...



Quarto Impacto (2/4)



Estava na altura de voltar a casa. Acender a lareira, comer os restos do almoço e fumar uma cachimbada junto ao lume. As labaredas são mesmo um encanto. Se olharmos de mente aberta para o fogo, e para as sombras que ele evoca, podemos assistir a um espetáculo digno de ser apresentado nas maiores salas das principais metrópoles. Cheio de drama e mistério. É tudo uma questão de saber usar a cabeça. Já para usufruir do cachimbo, além da cabeça é preciso usar as mãos. Foi feito por mim e tratei de lhe esculpir, na chaminé, uma coruja. Ficou um bocado tosca mas, em todo o caso, adorável. Confesso que não fiquei satisfeito no momento da talhada final e que cheguei a pensar em lixar a madeira até a superfície ficar lisa, no entanto, ao olhar para a minha criação, como se se tratasse, de facto, de uma coruja verdadeira, acabei por lhe ganhar carinho. De maneira que lhe arranjei um espaço digno na minha vida: a companhia dos meus serões à lareira. No fim de contas, superfícies lisas todo o homem é capaz de as fazer, e ficam todas idênticas, mas quanto à criação de corujas a história é outra. Excluindo este meu arrufo expressionista o cachimbo era normal e fumava bem. Somente a qualidade do fabrico não correspondia à do tabaco, que consistia em míseros palitos de pinheiro. O sabor não era nada de especial. Mas também não me podia queixar. Não havia melhor. E o fumo sempre me ajudava a superar as longas noites de inverno.

Ora, hoje, ao acordar, era assim que pensava finalizar mais um dia no paraíso. Calma e relaxadamente, perdido no fumo e no fogo. Mas agora com o sol a pôr-se, pressentia que não era isso que me esperava.

Algo de estranho, ao meu universo, iria manifestar-se.

Estava nervoso. Tal e qual um animal surpreendido por um predador, que habilmente soube manter-se invisível durante a sua aproximação. Se estivesse para ser caçado, de acordo com o guião, agora teria que correr pela minha vida. Mas obviamente que não era nada disso que ia acontecer. Eu era o predador alpha da região. Também não notava nada de errado em meu redor. O rio corria. Costumeiro. O céu... O céu talvez estivesse mais vermelho do que habitual. Um pouco mais pronunciado. Agora que o observava com olhos de ver. Era de um vermelho macabro. Catastrófico. De uma violência sobrehumana. Um céu de sangue. Caramba! Esta associação de ideias não é nada bonita. Teria acontecido algo, na minha existência passada, onde o vermelho tivesse tido um papel negativo? Quem sabe. Pensaria nisso depois. Tinha, primeiro, que recuperar a calma.

Contei até dez, devagar, para ver se me abstraía, quer da realidade, quer do espírito. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito... Em vão. Continuei com os nervos em franja. Portanto não era o Ego a reagir emocionalmente a fenómenos íntimos misteriosos. A estranheza, que sentia, provinha do mundo material. O mundo estava a mudar. E não era só o céu.

Continua...

Quarto Impacto (1/4)

M
ais um dia no paraíso. A imensa floresta continua no mesmo sítio. Composta maioritariamente por abetos e pinheiros que se estendem ininterruptamente até à linha do horizonte. Um verdadeiro oceano de árvores, que nem no pico do inverno ficam despidas, e que na prática me separa do resto do mundo. A paisagem é assombrosa. Daquelas boas para fotografar e meter no instagram com uma hashtag toda hip: #wonderfulearth_hd. Sendo mais preciso, eu encontro-me cercado por uma grande muralha branca. Esta região fica coberta de neve durante todo o ano exceto nos meses de verão. É verdade, eu vivo numa espécie de ilha siberiana. Numa pequena clareira circular no seio da floresta, atravessada a meio por um rio muito negro, que divide o terreno em duas margens idênticas. Eu presentemente ocupo a direita. Não sei ao certo há quanto tempo vivo aqui. Cheguei apenas com as roupas que trazia no corpo, possivelmente no fim da primavera, flutuando rio abaixo em cima de uma placa de gelo que por acaso acostou nesta clareira. Quando acordei não possuía memória alguma do meu passado. Nem do meu tempo, nem da minha casa. Porém sentia-me extraordinário. Bem-disposto, confiante e tranquilo. E leve! Tinha a sensação de ter largado algures uma mochila pesadíssima. Era como se a Terra me tivesse libertado da sua gravidade. Devia ter os meus trinta anos aquando da minha chegada. Sim, creio que era por aí. Mas sinceramente desconheço a minha idade certa, tal como a minha origem. Sei que já fui mais novo do que sou agora pela observação do meu reflexo nas águas do rio. Já não é só a neve que é branca por estes lados. Depois da euforia inicial passei a sentir-me como um verdadeiro náufrago. Uma desafortunada vítima de um terrível desastre que lhe levou tudo o que possuía. Isto se eu possuíra alguma coisa. Enfim, não sei, não me lembro de nada. Nem do meu nome. A melhor maneira de descrever a minha situação é que eu sou um Robinson Crusoé sem memória e sem um sexta-feira. Se há outro ser humano neste mundo, além de mim, eu nunca o vi. Nos primeiros anos ainda me punha a observar o rio durante o degelo a ver se outro como eu aparecia. Em vão. Nem vivalma. Mas se eu existo, e tenho consciência de que sou um homem, que pertenço à família humana, isso só pode significar que existem outros como eu. Que outra hipótese poderia ser considerada? Que eu era único? Um produto inédito do caos? Adão? Cadê Lilith? Eva? Não, que parvoíce. A Razão não me permite aceitar tal absurdo. Com certeza a floresta que me rodeava funcionava como uma barreira natural. E tanto impossibilitava a minha fuga como impedia a entrada de outros. Vocês agora perguntam: Mas tu não estás preso, porque é que não tentas a tua sorte? Se não consegues atravessar a floresta, então, podias fazer uma jangada e lançares-te ao rio. Sim, eu não estou preso. Creio que não. Pelo menos não de uma maneira visível. E, claro, no verão as águas são calmas o suficiente para permitirem a navegação de pequenas embarcações, o que significa que se fizesse uma jangada, mesmo que fosse frágil, poderia descer o rio em direção, suponho, do mar. Porque é que nunca o fiz? Porque, creio, ainda não posso abandonar este lugar. É certo que isto não é uma prisão. Quero que isto fique bem assente. Mas aconteceu que negras visões se abateram sobre a minha mente quando, por carolice, decidi dar um mergulho no rio. Fiquei bastante perturbado pois foram visões semelhantes àquelas que a floresta me ofereceu quando pela primeira vez me aventurei no seu reino. Não se tratam de visões dantescas, ou monstruosas, apenas consistem em imagens que sugerem que eu não estou preparado para partir. Ora, até que esse dia chegue, aparentemente, estou proibido de avançar floresta adentro ou rio abaixo. Isto está escrito, algures na minha mente, como lei absoluta da minha vida neste singelo circulo de perfeita paz. E se desafiar essa vontade julgo que serei duramente castigado. Por mim tudo bem. Eu posso esperar. O que me é necessário à sobrevivência encontra-se facilmente ao meu alcance. A pesca é abundante e os invernos não são rigorosos. Ainda que sejam longos. Além de que na margem onde vivo foi construída uma casa, uma pequena cabana, em madeira. Que só pode ter pertencido a outro pobre coitado como eu. É aí onde eu tenho vivido até hoje. Uma verdadeira cabana modelo. Já vinha equipada com utensílios de cozinha essenciais, como panelas, talheres, pratos e copos. Até fósforos. Encontrei inclusive ferramentas de carpintaria e um machado. Instrumentos bastante úteis para quem vive rodeado de madeira. A casa encontra-se mobilada com uma mesa, quatro cadeiras, uma cama, com lençóis e cobertores, e uma cadeira de baloiço feita por mim. A lareira completa este conjunto acolhedor. E à laia de companhia ainda tenho uma bíblia cristã. Bizarro. Nunca foi aberta. Está como nova. E eu também não me senti tentado a estreá-la. Quer dizer, suponho que seja uma bíblia cristã por causa do crucifixo dourado, estampado no centro da capa mole e preta. Além destas comodidades também tinha fio de pesca com fartura e uma caçadeira com algumas munições. Portanto se me apetecesse caçar tinha como fazê-lo. Já vi por aqui veados, coelhos, javalis, ursos e até lobos a rondar a clareira. Mas os animais mais agressivos não me tentaram atacar. Além disso o rio é rico em peixe e como fonte de alimentação serve perfeitamente. De maneira que ainda não precisei de andar aos tiros. Porém este inverno a temperatura anda anormalmente baixa. Até hoje, o meu casaco de ganga revestido com pêlo tem sido suficiente, mas este ano está mesmo a pedir um casaco mais quente. E tanto penso nisto que já sonhei várias vezes com animais mortos. É apenas um sonho mas isso já representa uma possibilidade, uma promessa que num dia menos bom eu pegarei na caçadeira e matarei um animal indefeso. Esperemos que não. Talvez o verão este ano seja célere e impeça essa tragédia. Em breve cairá a noite. A última luz do dia ilumina o pico mais elevado do Leão Voador, uma montanha solitária, que domina toda a região com a sua coroa de neve permanente. Eu chamo-lhe assim porque me parece um leão a voar acima da paisagem. E voaria, com certeza. Se ganhasse asas.

Continua...

Terceiro Impacto


“Vem cá à dona.”

Mas qual vem cá, qual carapuça. Por acaso sou um cão? Hum, era possível. A linha do horizonte tinha ficado subitamente mais próxima da linha do meu olhar. Portanto tinha diminuído de estatura. Além disso sentia um desejo insano de perseguir a cauda... Quatro patas, check, pelo castanho claro, check, focinho preto, check, cauda, check. Ora bolas. Xeque-mate. Então o paraíso consistia nisto? Podiam ter avisado que iria viver o afterlife na forma de cão. Teria me preparado de alguma forma. Teria lido mais livros. Mas pronto, enfim, poderia ter sido pior.

De que forma poderia ter sido pior? Bom, não sei ao certo. É a primeira vez que isto me acontece. A transmigração da alma já foi um assunto levado mais a sério, discutido pelos maiores sábios de diversas especialidades, mas atualmente não se discute isso em público. De maneira que tenho pouco conhecimento sobre as possíveis transformações espirituais provocadas pela morte corporal. Provavelmente a maioria de nós continua a sua existência como humano. Por isso ninguém pensa nisto. E aqueles que mudam de forma após a morte não voltam para contar a história. Caso contrário, tenho a certeza, já teríamos tomado consciência destas transformações. Deve estar tudo relacionado com o nosso espírito, ou mais concretamente, com o nosso animal interior.

"Vem à dona!"

Espera aí, ó Dona. Deixa-me acabar o raciocínio. Quem nunca simpatizou com um gorila? Ou com uma tartaruga? E quem diz estes diz outros seres vivos. Até insetos. Claro que não desejamos viver como eles mas isso não nos impede de secretamente desejarmos as suas qualidades: a sua força, a sua agilidade, a sua beleza, etc. Afinal se as formas de vida deste planeta partilham invariavelmente algum ADN entre si, então não será absurdo pensarmos que o Homem tem um pouco de abelha ou gafanhoto dentro dele. E a mesma coisa em sentido inverso pois, segundo este raciocínio, um sapo ou um gato também terão o seu homem interior.
 
“Já te disse para vires à dona!”

Olha-me esta. Já ouvi! Cá estou eu novamente no meio da neve. Estariam as pradarias da Terra todas ocupadas? Tinha mesmo que vir parar a um frigorífico? Que sorte malvada. A poucos metros a mulher, que aparentemente era uma Dona, esperava que eu obedecesse à sua ordem. Encontrava-se vestida de negro. Tapada dos pés à cabeça. Até o seu cabelo estava coberto por um véu. Estaria de luto? Eu não sentia vontade nenhuma de lhe obedecer. Qualquer coisa me dizia que deveria temê-la. Mesmo assim aproximei-me a correr. A curiosidade canina era mais forte do que o meu medo. Ela agachou-se e afagou-me carinhosamente enquanto eu me pus a lamber-lhe o rosto. Este parecia-me insolitamente familiar. Niil? Niil és mesmo tu? Estás mais velha! Que fizeste ao teu cabelo? Pintaste-o de preto? E estás assim vestida para quê? Alguém morreu? Sou eu o Joel! Agora sou um cão!

“Good boy. Agora dá a pata.” 


É escusado dizer que ela não percebeu patavina do que eu disse. Portanto parei de ladrar e acedi ao seu pedido.

“Não é essa! A outra pata.”

Levantei então a pata direita, que se transformou subitamente numa mão humana. Weird. Niil, não se mostrando incomodada com isso, ofereceu-me uma pistola Luger que, noutra vida, se bem me recordo, pertencera à minha psicóloga.

“Agora faz como eu te ensinei.”

O que é que tu me ensinaste? Não percebo o que queres que eu faça com esta arma.

“Só tens de puxar o gatilho.”


Niil pegou-me na mão e virou a Luger na direção do meu focinho. Vou morrer outra vez? É isso? Quando é que isto vai acabar? Aquela Niil adulta limitou-se a sorrir. Um lindo e bondoso sorriso. Está bem. Mas quando esta bizarra aventura terminar quero um belo osso como recompensa! Ouviste bem? Cerrei os olhos e puxei o gatilho.

Le Second Impact

A luz vermelha continuou a avançar resolutamente pelo meu corpo. A morte parecia inevitável. As pernas e os braços já estavam incapacitados. O estômago ardia como se eu tivesse ingerido um punhado de brasas. O meu único conforto consistia em pensar que tudo não passava de um produto da imaginação. Enquanto me perdia sei lá em que dimensão Niil observava-me. Era o meu público. A sinistra testemunha do meu fim.

"Estás a gostar do espetáculo?"

“Estou," respondeu Niil. "Nunca vi ninguém morrer.”

“Vai à merda."

“Oh, Joel, por favor, não estragues o momento com palavras rudes.”

Eu desejava responder-lhe de forma ainda mais rude mas aquela lava sobrenatural acabou por me cobrir a boca.

“Pronto. Agora está caladinho."
 

Merde! Eu não podia falar mas tinha de ouvi-la até ao fim. 

"Um,” começou Niil. "Dó."

Por fim os meus olhos foram devorados e fui lançado na escuridão.

"Li."

“Tá. Cara de amendoá. Pronto, Joel, já vi sofrimento que chegue. Aqui vai uma dica. Se encontrares alguém que dispare a arma por ti talvez escapes.”

A negritude deu lugar a uma brancura irreal. Porém em vez de perder a consciência continuei acordado. O fim da vida não deveria provocar a suspensão total dos sentidos? A não ser que... Niil continuava a sussurrar-me do outro lado.

“Procura dentro de ti alguém capaz de disparar a arma.”

Senti frio. À minha frente tinha uma cabana. Encontrava-me na orla de um pinhal. Numa clareira coberta de neve. Afinal o paraíso não era tropical mas siberiano. A baixa temperatura impeliu-me na direção da cabana. Ao dar o primeiro passo ouvi uma voz feminina vinda detrás.

“Não podes.”


Não me virei. Havia hostilidade naquela voz. Pressenti que caso me virasse para ver quem falava nunca mais voltaria a ver a Mariana. Porque é que, do leque de pessoas à minha disposição, eu pensei na minha psicóloga? Ela estava longe. Demasiado longe. Mas a cabana estava ao meu alcance. Dei um novo passo.

“Aquela casa pertence-me. Não podes lá entrar,” avisou a voz.

“Então acaba já com isto.”

“Avec plaisir.”

Senti um projétil a atravessar-me violentamente o peito. Caí de seguida na terra gelada e perdi os sentidos.


Uma Pausa Para o Chá

“Joel, quanto mundo consegues meter na cabeça?”  

“Para lá de muito,” respondi sem muita convicção.

Wow. Não sei como consegues. Eu já tenho sérias dificuldades em mentalizar-me do meu corpo quanto mais do mundo.” 


Era uma observação interessante. Que daria para uma longa e filosófica conversa. Mas eu tinha assuntos mais prementes para tratar. De maneira que não estava com cabeça para lidar com os devaneios existenciais daquela pré-adolescente.

A Mariana tinha sugerido que eu encontraria dentro daquele livro, o tal Dogma, algo que me iria ajudar nos tempos vindouros. Uma vez que a sua eficácia já tinha sido comprovada pela minha ex-psicóloga, não tinha motivos para me pôr a duvidar.

“Vou ver então o que tem o livro lá dentro. Tens alguma ideia do que possa ser,” perguntei à Niil.

“Parvoíces da minha mãe.”

“Porque é que hão-de ser parvoíces?”

“Porque conheço a minha mãe. A nossa casa está cheia de tralha.”

“Que tipo de tralha?”

“Chaleiras. Chaleiras de todos os tamanhos e feitios. Faz coleção.”

“Eu não acredito que haja uma chaleira dentro do livro.”

“Olha que existem chaleiras bem pequenas.”

“Aposto contigo que não é uma chaleira.”  


"Já perdeste."

Lá porque a minha ex-psicóloga mantinha uma coleção de chaleiras, como hobby, isso não implicava que ela gostasse de chaleiras ao ponto de ter um espécime guardado dentro de um livro, no seu consultório. Levando a sério Niil, pensei que, quanto muito, encontraria umas embalagens de chá. Um que possuísse qualidades excecionais de relaxamento. Durante os períodos difíceis as maiores dificuldades que nos esperam, normalmente, têm origem nos nossos nervos. O nosso sistema nervoso tem um processador deveras temperamental que, infelizmente, se apraz a questionar a maior parte das tarefas que executamos naquilo que nos ensinaram a chamar de Vida Moderna. Isto trocado por miúdos, significa que vivemos a melhor das vidas e não estamos satisfeitos com isso. Como é isto possível? É um mistério. Apesar desta contradição, aparentemente insolúvel, que consome a alma do Homem Moderno, continuam a apresentar-nos esta vida como uma conquista civilizacional de grande importância. Definitiva, até! O fim da História, atreveram-se alguns a dizer! E que devemos agradecer e elogiar, efusivamente, os nossos queridos pais que nos ofertaram este produto do Progresso. Tudo bem. Prestemo-nos às tristes celebrações. Só porque não há mais nada para fazer. Porém a espada também foi uma grande conquista da civilização e isso, para a maioria dos mortais, não foi motivo de júbilo. Muito pelo contrário. Mas não pensemos mais porque o pensamento prejudica a produtividade. Continuemos a nossa história.    

Dentro do livro Dogma, As Verdades Intocáveis da Humanidade, fui encontrar dois objetos. Uma pistola e um ovo preto, polido, de pedra. Eu não consegui conceber em que é que aquele ovo de pedra me poderia ajudar mas quanto à pistola presumi que serviria para eu disparar sobre alguém, ou sobre algo. Uma ajuda altamente questionável. Em todo o caso o livro era falso e servia apenas de esconderijo para aqueles objetos que, segundo Mariana, a ajudavam em períodos difíceis. Mas que outra vida, além da de psicóloga, colecionadora de chaleiras e cidadã cumpridora, ela teria para precisar de uma pistola? Ainda por cima uma pistola não regulamentar. Eu tinha frequentado um curso de anti-terrorismo, obrigatório para todos os sincronizadores, onde tivera a oportunidade de consultar os catálogos das armas legais existentes, e de treinar com algumas, e esta que se me apresentava não constava nas listas. Portanto eu podia dizer, com alguma certeza, que aquela pistola, que tinha a aparência de uma Luger alemã, não era legal. Esta tinha um cano mais longo do que aquele, das tradicionais Luger, e possuía um apêndice cúbico afixado na extremidade inferior do cabo. Algo que à primeira vista parecia ser uma espécie de bateria. O que levantava a questão acerca do carregamento da arma. As balas por ali não entravam, como era suposto. Portanto não podia ser uma Luger, teria quanto muito o aspeto de uma. Não podia ser sequer uma arma de fogo. Pois não havia maneira de carregar a arma. Se calhar Niil tinha razão. A Rei tinha me oferecido uma chaleira. Retirei o ovo de pedra, acomodado numa cavidade cortada com a sua forma, no meio do livro, e guardei-o no bolso do casaco. De seguida peguei na pistola, mais para verificar o peso, do que outra coisa. Não tencionava levá-la para casa. Ia deixá-la no consultório. A ideia de andar com uma pistola, cujo funcionamento desconhecia, não me inspirava segurança. A Luger era extremamente leve para uma pistola. Se não fosse o contacto com o frio do metal diria que era feita de plástico. Mas não. Era feita de uma liga metálica polida ao ponto de refletir a envolvência, quase como um espelho. Portanto tinha nas mãos uma arma prateada, de um modelo que eu não conhecia. Um adereço digno de um filme de ficção científica. Apontei-a como se pretendesse disparar. Assim que ajustei a palma da minha mão direita ao cabo da arma senti uma picada na pele. Pensei que o cabo tinha algum defeito. No entanto, ao verificar o local onde eu me tinha picado constatei que a superfície era admiravelmente lisa. Beep. Naquele preciso momento a pistola emitiu um apito que foi seguido do surgimento de uma luz vermelha, em toda a superfície da tal bateria. Que passou imediatamente a piscar.

“Análise sanguínea terminada. Pode usar a arma.”

Então a Mariana previa que isto poderia acontecer. Mas com que intuito? Se eu estava autorizado a usar a arma, isso significava que ela teve a desfaçatez de arranjar, clandestinamente, uma amostra do meu ADN para introduzi-lo na pistola como ADN proprietário. As armas, produzidas atualmente, possuem todas um descodificador de ADN, para garantir que a arma não é usada por utilizadores não autorizados. Ao terminar a análise sanguínea a Luger modificada começou a emitir um zumbido intermitente, mesclado de guinchos eletrónicos.

“Alguma vez viste a Mariana a usar esta pistola?”

Virei-me na direção de Niil. Mas encontrei a secretária vazia. No resto do consultório também não havia sinal dela.

“A Rei não tem armas em casa.”

A voz de Niil veio insolitamente de cima.

“Só chaleiras.”

Olhei para o teto e encontrei a Niil suspensa sobre mim. Os seus pés estavam fixos no teto. O seu cabelo azul-celeste, ao contrário do que eu esperava, era puxado para cima como se a força da gravidade estivesse invertida. Era uma acrobacia incrível. Mas que para ela não passava de uma habilidade normal.


"Mais um dos teus truques?
 
Subitamente fui invadido por vertigens. Senti que todo o meu sangue estava a ser lançado na direção do meu cérebro. Convulsões tomaram-me o corpo por alguns instantes. Por fim vomitei. Da arma continuavam a sair ruídos indescritíveis. A bateria vermelha pulsava como se fosse um coração. Escusado será dizer que Niil nem pestanejou, perante o meu quase desfalecimento. Observava-me da mesma maneira que se observa um inseto aprisionado. Agora sei como se sente um pirilampo quando é apanhado e metido dentro de um frasco.

“Niil, temos que ter uma longa conversa sobre tudo isto. Sobre ti, sobre a tua mãe, sobre...”

“Olha, acho que a pistola está a começar a funcionar.”

A bateria que pulsava apagou-se e, por sua vez, a pistola tornou-se totalmente vermelha. Começou a resplandecer com grande intensidade. De seguida, a arma, como se tivesse adquirido a capacidade de emitir luz, envolveu-me a mão numa massa de luz encarnada. Era uma luz de uma espécie fluída e quente. E não se ficou pela mão. Avançou sem demora sobre o meu braço. Aquela luz viscosa e vermelha ameaçava devorar-me o braço, por completo.

“Acho que vais ficar sem braço.”

“Não brinques.”

“Vais ficar sem braço. O vermelho é guloso. Não gosto do vermelho.”

Realmente parecia que o objetivo daquela luz era mesmo avançar pelo meu braço fora, que estava tomado por uma dormência que me impedia de o mover. Eu não sabia o que fazer. Eu não sabia o que me estava a acontecer. E não estava a gostar da experiência. Presumi logo que iria morrer. Era o fim. Pressentia-o. A não ser que Niil interviesse. Ela tinha poderes especiais. Ela iria com certeza ajudar-me. Contra o que seria sensato eu confiava naquela rapariga.

“Ok, Joel, acalma-te. Joel, pensa assim. Não deixes a tua mente divagar no desconhecido. Mantém-te em território conhecido.”

Porra. Só me faltava esta. Niil era psicóloga como a mãe.

“Niil, não podes ajudar-me doutra maneira? Arranca-me a pistola da mão. É que não consigo mexe-la.”

“Népia. Morreria ao tocar no vermelho.”

Entretanto o vermelho já tinha envolvido o braço direito e avançava pelo peito em direção ao umbigo. O meu coração começou a bater com dificuldade. O caso estava mal parado. Niil não estava a brincar. O vermelho era mortal.

“Talvez se disparares consigas inverter o processo. O vermelho, que vês, é basicamente a energia do teu inconsciente que através dessa pistola está a verter para o exterior e sobre ti. Isso, em princípio, não te matará.”

“Em princípio... E no final?”

“Quando o inconsciente tomar conta de ti, morrerás. Mas experimenta disparar. Pode ser que resulte.”

“Como, se não consigo mexer a mão?”

Nesse instante a arma disparou. Pelos vistos, se me concentrasse, conseguia dar ordens à arma. O tiro esse não deixou qualquer marca na alcatifa. Estava portanto a lidar, novamente, com algo sobrenatural. O vermelho recuou. Mas fogo parecia ter lavrado no meu corpo, desde o peito até ao cotovelo do lado direito. O meu cérebro entrou em blackout, cai de joelhos e voltei a vomitar. Olhei o vómito espalhado no chão. Era composto sobretudo por bílis. Afastei-me daquele sítio pois começava a ficar enojado. Cambaleei até ao outro lado da sala e sentei-me com dificuldade no chão, de costas contra a parede. Niil seguiu-me caminhando pelo teto.

“Vês. Se consumires essa energia ela desaparece. Se fores disparando pode ser que recuperes a mão.”

“Não sei se resisto a mais um tiro.”

“Pois. Não sei o que a minha mãe tinha em mente quando ela disse que isto ajudaria. Onde é que está o ovo? Havia um ovo, não havia?”

Levei a mão esquerda ao bolso e apanhei aquele objeto bizarro. O ovo era frio. Muito diferente daquele fogo insano.

Entretanto começaram a cair pequenos flocos de neve. Niil desapareceu. Tal como o consultório. Joel Ilitch tinha agora à sua frente um descampado coberto de neve que se estendia até um rio em degelo. Um vulto assistia, na margem, à passagem das placas de gelo que corriam, dispersas, rio abaixo. Neste momento Joel perdeu os sentidos.



Tour de Force

Adivinhavam-se tempos difíceis. E a quem podia pedir ajuda? Aos meus pais? Desde que comecei a trabalhar como sincronizador que virtualmente somos desconhecidos. O meu trabalho é tão fora deste mundo que é impossível explicá-lo a uma pessoa comum. O produto da minha atividade era invisível e de natureza conspirativa. Isso obrigava-me a esquivar-me de maneira a não tocar no assunto com os meus pais. A ocultação das minhas rotinas e opiniões não se fez esperar. Os nossos telefonemas agora não passavam de meros olá, adeus, como estás. Isto exclusivamente com a minha mãe. Pois quanto ao meu pai já nem me lembrava da sua voz. Dois anos sem ir a casa danificaram seriamente a minha ténue relação com ele. Creio que nem ele nem eu nos importávamos com essa fatalidade. Além disso o meu pai mostrava os seus primeiros sinais de demência. Segundo a minha mãe ele passava os dias sentado na poltrona a assistir a emissões de ciclismo. Quando estas não haviam, metia-se a pedalar na bicicleta de treino que comprara. Passava horas a fio naquilo. É possível que por esta altura tenha completado as competições ciclísticas de todos os países que existem. Sem sair de casa. Eu bem que lhe dissera que ele precisava de se manter ocupado, e que a idade da reforma não era razão para abandonar o que fazia antigamente. Mas o meu pai fez orelhas moucas. Decidiu-se a vender o restaurante familiar onde tinha colocado quarenta anos da sua vida, o Restaurante Paulo, batizado em homenagem a ele próprio. Hoje ninguém dá o seu nome a estabelecimentos comerciais. Só os saudosistas, sempre com a cabeça noutro tempo que não o deles. Tempos, porventura mais honrados, visto que não há outra palavra para os definir. Quando o resultado do trabalho feito era proporcional ao tempo despendido nele. Essas contas acabaram. Realidades virtuais e computadores quânticos tornaram de vez o trabalho mental no único motor da sociedade. Basicamente hoje em dia correr não nos leva a lado nenhum, a não ser que se queira ser estrela pop ou político. Uns para manterem a perfeição corporal outros para caçarem os melhores cargos. A fronteira que separa essas duas ocupações é atualmente inexistente. Tanto que se tornou regra os candidatos a membros do governo passarem primeiro por escrutínio popular, num qualquer programa televisivo de entretenimento. Creio até que o presidente da câmara atual ficara conhecido por se ter espalhado a andar de skate. O tralho tinha tanta piada que o vídeo correu o mundo pela internet. A popularidade dele era imensa. Uma coisa inacreditável. O talento deste indivíduo era cair com estilo. Chegara a participar como imitador das quedas do Buster Keaton num programa de talentos. Não ganhou, mas foi o suficiente para ser recrutado por um partido político, do arco da governação, que o levou até onde ele se encontra hoje. Se tivesse feito as coisas doutra maneira bem que podia ter arranjado um cargo no governo nacional como não o fez ficou-se pelo regional. O Nuno era fã dele desde o início. De vez em quando lá saia um “O medo é coisa que não me assiste.” Frase da autoria do nosso presidente. É um clássico, costuma dizer o meu chefe.

Sherlock

Creio ter notado uma ponta de gozo na cara de Niil. Possivelmente causada pela minha cara subitamente branca ao ouvir que podia ficar sem mão. Contudo isto não passavam de perceções intimas, pois nenhuma alteração se dera de facto na expressão facial dela nem eu ficara pálido.

“O poder só se manifesta em ti enquanto estivermos em contacto. Se eu largar a tua mão voltarás a ser um homem normal. Consegues imaginar o que vai acontecer ao teu braço, aposto.”

Obviamente que conseguia imaginar. Via sangue a correr por todo o lado. De maneira que apertei a mão de Niil com a intenção de nunca mais a largar. 


"Escusas é de me magoar."

“Ah, pois, claro. Onde é que eu estava com a cabeça? Então se o ritual de iniciação está concluído que tal irmos para casa? Vou encomendar uma pizza.”

A partir deste momento comecei a tentar construir a minha vida com Niil. A pizza seria o meu primeiro passo na direção de uma vivência comum harmoniosa. Todos os putos gostam de pizza. É mais forte do que eles. Entretanto as nossas mãos emergiram das profundezas da mesa e eu pude largar a de Niil seguro que não ficaria sem ela. A sensação de retornar a ver o meu membro intacto surgiu-me semelhante a alguém que volta a casa, depois de ter feito uma longa viagem. A minha mão estava deveras contente por voltar a casa.


“Gostas de pizza, não gostas?”

“Não vais ver o que está dentro do livro.”

Niil ignorou completamente a minha pergunta. Se calhar não gostava de pizza como era normal. Afinal ela não era normal. Ou então também adquiriu o hábito da mãe de nunca responder àquilo que se pergunta. Um ato que um estranho poderia achar absurdo mas que não era de todo. Não existe nada pior, para uma relação, do que responder objetivamente durante uma conversa. Se atuarmos assim não temos conversas, temos esgrima de egos. Niil tinha razão. Convinha dar uma vista de olhos a esse livro que marcou a minha imaginação desde o início.

Olhei para contornos da estante que sobressaiam da penumbra do consultório iluminado somente pela luz da secretária da Mariana. A escuridão no exterior era total. Achei isso estranho pois junto ao prédio haviam uns quantos outdoors iluminados. Que de certeza projetavam alguma luz nos apartamentos dos andares mais elevados. O mostrador do meu relógio de pulso mostrava que eram 21 horas e 23 minutos. Não passara assim tanto tempo desde a minha sesta. Com tanta informação a ser-me transmitida imaginei que seria mais tarde. Os outdoors desligavam-se a partir das 23. Comecei por crer que o consultório também se encontrava metade no vazio. Desde que pusera os pés no apartamento a primeira impressão que tive é que o corredor estava estendido sobre o ar e que não havia outra coisa senão vazio sob os meus pés. Mas isso era impossível. O nono andar direito existia e cumpria as regulamentações do prédio. O dossier do projeto mostrava claramente o apartamento tal como ele era na realidade, com a sala onde funcionava o consultório ao fim do corredor. Portanto a explicação para a ausência de luz proveniente do exterior não era de ordem sobrenatural. Talvez as janelas tivessem vidros especiais que impediam a iluminação noturna de entrar. Se o apartamento fora isolado acusticamente então essa hipótese era plausível. 


Niil mantinha-se impávida, à minha espera, com os seus olhos cinzentos apontados à minha cara.

“Sabes que tens os olhos da tua mãe?”

“No shit, Sherlock.”

“Ok.”

Niil não era fã de observações óbvias. Se íamos ter este tipo de intercalações todos os dias então ia mesmo precisar de toda a ajuda que conseguisse reunir. Era melhor ver o que a minha ex-psicóloga tinha para mim, guardado dentro do Dogma.



Niilismo

Não havia mais mensagens e eu não tinha um buraco onde me meter para fugir da situação. Niil, a rapariga de cabelo azul, fitava-me com cara de caso. Um misto de curiosidade e ceticismo invadiam aquela face de criança de doze anos, que até há pouco não tinha mostrado qualquer emoção.

“Chamas-te Niil?”

“O meu nome é Niil.”

O vazio emocional voltou à face dela. E como se eu não acreditasse no nome bizarro que Mariana lhe tinha dado, Niil arrancou uma página da agenda e escreveu o seu nome.


 

“Toma.”

Niil estendeu-me o pedaço de papel amarelado. Peguei nele mas não me passou pela cabeça que ela queria que o guardasse.

“Guarda. Assim não esqueces.”

“Ok.”

Dobrei o papel e coloquei-o no bolso interior do casaco juntamente com a minha carteira. O nome de Niil estaria mais do que seguro ali. O que entra nos bolsos do meu casaco fica lá durante meses. Intacto e preservado da passagem do tempo. Trata-se de uma peça de vestuário que nunca esqueço em absolutamente lado nenhum. Quando uma vez por distração deixara um casaco num restaurante, onde tinha jantado com o Nuno, obriguei o dono do estabelecimento a abrir portas, depois de fechado, para o recuperar. Não podia voltar a casa sem o casaco. O que sai de casa comigo deve voltar a casa comigo no final do dia. Chamemos-lhe uma das fundações da minha vida. Outra das fundações consistia em nunca dormir em camas alheias. Enquanto estudava na universidade e qualquer circunstância me obrigava a dormir fora da minha cama, geralmente celebrações estudantis realizadas para celebrar, creio, o absurdo da vida universitária, eu ficava pior que estragado. Era preciso no mínimo uma semana para me recompor, e voltar a ser eu próprio. É que era certo que iria sofrer de insónias constantes, que me obrigariam a viver num estado de sonambulismo diurno guiado por desejos provenientes sabe-se lá de onde. Ou seja, um Joel muito primitivo surgia em meu lugar. Há gente que adora viver assim. Eu não. Esse rebaixamento da consciência é um processo que só admito após as refeições. Detesto essa existência exterior a mim. Portanto sair de casa e voltar a casa é fundamental para o meu bem-estar. Não se trata de ser avesso a aventuras. Mas para mim ser obrigado a sair da minha zona de conforto contra a minha vontade é perto, em sensação, de ser metido num comboio em direção a um qualquer campo de concentração, tenha ele o nome e a forma que tiver. Quem diz isto diz parques de diversões, escolas, salas de cinema e outros sítios onde a minha entrada pressupõe a permanência até ao final previamente combinado. Claro que qualquer um pode sair. Mas terá que arcar com as implicações sociais de um ato de vontade individual. Não me agradam este tipo de atividades coletivas de caráter coercivo. Chamem-me o que bem entenderem, traidor, infiel, agitador, herege, é-me indiferente. Isto faz-me recuar até à minha infância. Quando o rei fazia anos os meus pais metiam férias e íamos acampar. Eram garantidos pelo menos quinze dias seguidos de vida comum ao ar livre. E sem consolas portáteis, nem leitores de música, pois não havia dinheiro para essas coisas, não havia forma de me evadir de uma dimensão que eu considerava hostil. Para me abstrair era obrigado a passar o tempo a brincar com outros miúdos que nada tinham em comum comigo. Importa dizer que em vez de me divertir ficava cansado de aturá-los. Por outro lado, era uma verdadeira alegria quando encontrava alguém com uma consola portátil, um miúdo rico geralmente. Era certinho que esse miúdo teria o meu coração. Como os meus pais eram gente de hábitos vincados, o parque de campismo escolhido era sempre o mesmo, de maneira que frequentemente tinha a sorte de me encontrar com um miúdo americano, que aparentemente vivia em permanência no parque e estava sempre equipado com as últimas novidades em videojogos. Não me recordo do nome dele. Para mim ele será sempre o miúdo americano. Será que a Niil gostava de videojogos? Pelo que entendi eu teria de ficar com ela até que a Mariana voltasse. Tinha que entretê-la com qualquer coisa. Ela entretanto voltara a desenhar. Agora desenhava um potente carro desportivo vermelho, que mais parecia uma nave espacial. Pelo menos sabia que ela gostava de desenhar. Pensei que seria uma boa ideia comprar-lhe um sortido de marcadores. Se bem que ela já tinha um. Eu não estava a ver donde tinha desencantado aqueles com que estava a desenhar.

“São teus?”

“Não.”

“Então?”

“São daquela a que chamas Mariana.”

Descobrir que os marcadores pertenciam à Mariana não me surpreendera. Só que o sítio onde eles estariam guardados seria numa das gavetas da secretária. Que estavam fechadas à chave. Tendo confirmado isso ao entrar no consultório. Logo só arrombando. Ato que provocaria um estrondo capaz de me acordar. O que não aconteceu. Então havia que considerar que existia um compartimento secreto, algures, que era conhecido por ela.

“E podes dizer-me de onde os tiraste?”

“Da gaveta.”

“Mas a gaveta está fechada à chave. Por acaso tens a chave?”

Se calhar tinha, afinal estava a falar com a filha da Mariana. Niil parou de pintar freneticamente o carro de vermelho, deixando a traseira meio pintada, e tapou o marcador. Pôs-se a olhar para mim. Reparei que, excluindo o cabelo, conseguia encontrar na boca, no nariz e nos olhos, que também eram cinzentos, traços de Mariana. Insolitamente as sobrancelhas também eram azul-celeste.

“O teu nome é Joel.”

“O meu nome é Joel.”

A minha voz não me pareceu a minha. Era como se um cordão tivesse sido puxado e eu como marioneta respondia à vontade do meu mestre. Era Niil, esse mestre?

“Conheces a Rei.”

“Conheço a Rei.”
 

Supus naturalmente que falávamos da Mariana. Rei, outro nome bizarro. Devia tratar-se de uma tradição familiar.

“Desde.”

“Conheço a Rei faz mais ou menos um ano.”

“Ela nunca te falou de mim.”

“Nunca.”

A Mariana que agora se chamava Rei nunca tinha referido que tinha uma filha. Afinal a nossa relação era terapêutica e nada mais. Além disso nunca imaginara a Rei com filhos. Afinal que idade tinha ela?

“A Rei tem trinta e um. Eu não sei que tipo de relação tens com a Rei mas acho estranho que ela não tenha falado de mim.”

“A Mariana era a minha psicóloga.”

“Isso já sabemos.”

E o que é que havia mais para saber? Niil estava admirada da minha ignorância relativamente à sua existência. Mas não havia razões para isso. Mariana, ou Rei, era somente a minha psicóloga e a sua vida pessoal era um assunto sem relevância para o meu caso. Se bem que ela ao longo das consultas teve a oportunidade de reunir bastantes informações sobre a minha vida pessoal e social. Não pude evitar sentir que a minha privacidade fora invadida sem o meu consentimento. Mas era um sentimento infundado, eu consentira. Apenas não pensara nas implicações disso.

“Queres ver a tua ficha?”


"Não."


Após dizer isto Niil ergueu a sua mão esquerda de maneira a mostrá-la por inteiro. Pois ela vestia uma camisola cinzenta cujas mangas eram grandes demais para os seus braços. Ela queria que eu olhasse para a mão. À primeira vista não vi nada de especial. Uma mão de garota. Pequena. Que possivelmente caberia na minha mão fechada. Mas de seguida, pensando na altura que a minha visão me estava pregar uma partida, a mão de Niil tornou-se transparente.

“Sim. A minha mão encontra-se metade no vazio. É por isso que consegues ver através dela.”

Niil colocou a mão à frente da sua cara para eu comprovar o fenómeno. E, sim, eu conseguia ver a sua cara através da sua mão.

“Que espécie de poder é esse?”

“Não sei. Acho que sou a única no universo que consegue fazer isto. Dá-me a mão.”

Eu entreguei-lhe a minha mão direita, que ao tocar na de Niil foi tomada por um frio intenso. A sua temperatura era extremamente baixa para um ser humano. Parecia que eu estava a tocar na superfície interior de uma arca congeladora. Não podia ser um frio real, caso contrário, teria queimado a mão imediatamente. Tinha conhecido pessoas com mãos anormalmente frias mas nada que se comparasse àquele gelo.

“A tua mão está gelada. É normal?”

“É melhor acostumares-te. É a minha temperatura habitual.”

“Caso único. Pelo menos no meu universo.”

“Sim, mas olha para a tua mão.”

A minha mão estava a tornar-se translúcida como a de Niil. Por momentos temi que ela fosse desaparecer completamente mas, a partir de um certo ponto, a opacidade estabilizou. Com a minha mão sobre a da pequena Niil, além de conseguir vislumbrar-lhe os dedos também conseguia ver os marcadores espalhados sobre a secretária.

“Eu consigo transportar o que toco para outra dimensão. Eu chamo-lhe vazio. Mas na verdade é um mistério até mesmo para mim.”

“Quer dizer que consegues atravessar para o vazio.”

“Nope. Eu não consigo ficar invisível.”

“Ainda bem.”

“Why.”



Realmente não havia razão para ficar satisfeito com esse pormenor. Ao ver o que ela conseguia fazer com a minha mão, concluíra que eu também poderia ficar invisível, e isso seria útil para andar de transportes públicos de borla. Só que a hipótese de ter uma garota invisível em casa incomodava-me.

“Agora vou mostrar-te o que se pode fazer com este skill.”

“Espera, nasceste assim? Já a dominar este poder?”

“Não entendo o conceito de nascer. Ou existes ou não existes. Agora mantém-te calado, Joel. Fazes demasiadas perguntas. Vê só.”

Niil puxou-me a mão na direção da mesa fazendo-a atravessar o tampo. Sem que a madeira oferecesse qualquer resistência.

“Porreiro. Então consegues atravessar portas e paredes.”

Assim se explicava eu não ter notado a entrada de Niil no apartamento.

“Qualquer material. E qualquer pessoa ou objeto que eu queira também o pode fazer se mantiver contacto físico comigo. Percebes agora como é que eu arranjei os marcadores.”

“Claro como água.”

A minha mão continuava engolida pela secretária de Mariana e envolvida pelo frio de Niil. Mas a última coisa em que pensava era neste fenómeno. Eu ia viver os próximos tempos, que podiam consistir em semanas, meses ou anos, pois não havia como saber quando Mariana regressaria, com aquela estranha rapariga de cabelo azul-celeste e poderes sobrenaturais, logo tinha que arranjar um quarto para ela. Não me parecia correto pô-la a dormir na sala.

“Bom, Niil, as apresentações estão feitas, podes largar-me a mão?”

“Só se quiseres ficar sem ela.”




You've Got Mail

Pressionei o botão do voice mail e depois de ouvir a indicação de mensagem nova seguida de um beep a voz da Mariana começou a sair do telefone.

“Joel, se estás a ouvir esta mensagem é porque eu me encontro fora dos teus limites. Dos teus limites humanos. Isto significa que de momento eu não posso ser encontrada por ti. Por isso não tentes procurar-me. É estranho, eu sei, mas não precisas de entender. A minha filha Niil vai acompanhar-te nos próximos tempos. Ela irá proteger-te até ao meu regresso." 

Niil olhou para mim de uma forma que, me atrevo a dizer, expressava verdadeira curiosidade. Eu sentia o mesmo pois não estava a ver de que maneira uma miúda me poderia proteger.

"Peço-te que a trates, nem mais nem menos, como se fosse a tua filha. Por esta altura deves estar preso no consultório. O sistema de segurança bloqueia as portas e as janelas do apartamento a partir das vinte. O código de desbloqueio é Zero, Nove, Zero, Cinco.”

Por detrás da voz de Mariana podia ouvir-se o ruído de automóveis e transeuntes numa rua movimentada. Ela apesar de se encontrar fora dos meus supostos limites humanos ainda respirava neste mundo.

“Joel, mais uma coisa. Pode ajudar, não sei. É mais um palpite do que uma certeza. Dentro do livro com o título Dogma, deves lembrar-te dele, guardo dois objetos que me ajudam nos momentos difíceis. Podes usá-los. Talvez te ajudem. Agora tenho que desligar. Esperam por mim. Acredita que nada disto foi planeado. Adeus.”

Beep. Não tem mais mensagens.

Joel versus The Universe

A rapariga podia ter tido a delicadeza de me acordar. Afinal eu tinha adormecido num sítio impróprio, no divã do consultório da minha psicóloga. Em casa, na minha cama, dormiria de forma mais confortável. Mas não o fez. Deixou-me em paz. Assim se semeiam boas relações e a nossa parecia começar na base do respeito mútuo. Além disso éramos duas almas abandonadas pela mesma mulher. Algo nos unia à partida. Talvez até pudéssemos ser amigos se bem que a cara inexpressiva dela me punha um pouco desconfortável. Ela não teria outro sítio para ir? Uma vez que o encontro com a Mariana, que lhe tinha dito para a esperar, não se realizara a rapariga estava livre para ir à sua vida. Aparentemente não tinha outros compromissos. Que precisão tinha ela de ficar ali? Estava ali para me fazer companhia? Tinha pena de mim? Se sim, eu também tinha pena dela. Com a sua idade, dava-lhe doze, portanto uma criança, o abandono por parte de alguém mais velho era um evento difícil de aceitar. Quanto tempo podemos esperar por alguém até começarmos a duvidar? Aproximei-me da secretária. A rapariga não se dignou a olhar para mim e continuou os seus desenhos. Fazia-os com todo o desplante nas folhas da agenda. Mesmo considerando o desaparecimento de Mariana achei que a rapariga se estava a precipitar ao tomar de assalto os objetos da psicóloga. Ela ainda poderia aparecer. E em todo o caso os pertences dos que desaparecem merecem algum respeito. Não são nossos. Pelo menos até serem encontradas provas do fim do proprietário. No entanto a rapariga do cabelo azul-celeste parecia não tomar isto em conta.

“Ei, também foste abandonada? Obrigado por não me acordares. Estava mesmo a precisar de uma sesta.”

Aquela cara completamente despojada de emoções levantou-se na minha direção.

“No problem.”

Voltou ao que estava a fazer. Desenhava a marcador, muito concentrada, quatro pessoas. O seu traço era infantil. Os corpos não passavam de palitos. Mas era possível identificar duas mulheres, um homem e uma criança. O homem, creio, era eu. Pelas sapatilhas e pelo casaco. As restantes figuras identifiquei como sendo a rapariga do cabelo azul, a psicóloga Mariana e outra Mariana, que ainda só tinha a cabeça.

“Duas Marianas,” exclamei não conseguindo conter o meu espanto.

“Uma é a que chamas Mariana mas a outra não conheces,” explicou a rapariga sem olhar para mim.

Analisando com mais atenção os últimos retoques feitos ao desenho a segunda Mariana usava calças e uma t-shirt decorada com uns gatafunhos. Ao contrário daquela que era psicóloga e envergava o habitual vestido azul-marinho.

“Uma t-shirt de uma banda rock?”

“Joy Division.”

Confirmava-se. Era a tal Mariana fantasmagórica descrita pelo sr. Mário.

“Estou a ver. Está muito giro. Tens imenso jeito.”

Pensei que se quisesse escrever um livro infantil aquela seria a capa. Mas quanto à minha figura teria que ver reduzido o tamanho da barriga. A rapariga tinha-a imaginado um pouco inchada. De resto estava bastante simpático. Eu não estava assim tão gordo como no desenho. Se bem que também não estava magro. Longe ia o tempo da elegância juvenil, resultado de refeições quando calhava e de andar sempre de um lado para o outro a perseguir ideais. Assim era fácil manter a linha. Mas o que fazer, quando se trabalha num escritório com o rabo, o dia todo, assente numa cadeira, para não ficar ao fim de uns meses literalmente com outro corpo? Ir ao ginásio, ter cuidado com a alimentação e consultar um nutricionista? E dinheiro e tempo para isso? Não faria mais nada senão pensar na minha barriga e no meu nariz. Além de que nunca pretendi ser modelo ou atleta olímpico. Como se ser cidadão já não fosse uma tarefa árdua. Malditos credos que inventamos para dar sentido aos dias. Primeiro éramos católicos agora somos helenistas. Quanto mais pensava nas exigências da vida urbana mais a vida rural me surgia pintada de verde e dourado. De qualquer das formas, de onde teria a Mariana desencantado esta rapariga. Que espécie de ligação havia entre as duas? Uma rapariga que tinha o à-vontade para estar no consultório dela a desenhar na sua agenda com marcadores coloridos, que sabe-se lá de onde ela os tirara.

“Alguém telefonou enquanto estavas a dormir.”

Apontou para o telefone que mostrava uma luz vermelha a piscar.

“Deve ter sido a Mariana.”

“Não sei. Não ouvi a mensagem. Ela não gosta que mexam nas suas coisas.”


Disse isto depois de ter atacado a sua agenda com arte. Mas eu não estava interessado em questionar a conduta da rapariga. A minha cabeça estava noutro sítio. Estava no vazio, por assim dizer, pois eu tentava localizar mentalmente a Mariana e a única coisa que encontrava era um nevoeiro cerrado.

“Precisamos de saber se é ela. Deve ter acontecido alguma coisa para ela não aparecer.”

“Tu é que sabes. Não sei que relação tens com a que chamas Mariana. Mas eu cá não mexia em nada.”

Porque é que esta rapariga se está a referir assim à minha ex-psicóloga? A resposta para essa questão ficará para depois. Primeiro queria ouvir a mensagem.




There Is A Light That Never Goes Out

Eu resistia em dar ao sonho uma qualidade profética mas era nisso que a minha lógica apostava. Desejava recuar no tempo. Bastava uma semana. Para que pudesse falar-lhe francamente. E dizer-lhe o quê? Mariana, podíamos, não, não devia tratá-la sem rodeios, ela era a minha psicóloga, não se tratava de uma amiga. Vistas bem as coisas nunca a tratei de forma direta. Tinha o cuidado de introduzir um mas, um então, um comentário de circunstância, antes do seu nome. Ao proferir o nome em primeiro lugar sem qualquer método introdutório creio que seria um gesto violento. Provocaria uma alteração demasiado brusca na nossa relação. Também não podia ser leviano ao ponto de combinar um café. Mariana, podíamos combinar um café? Era isto que eu queria dizer-lhe se recuasse uma semana. Contudo, na semana passada tal ideia não me tinha passado pela cabeça. Estava portanto satisfeito com aquele estado uterino. O que significava que se recuasse no tempo acabaria por agir do mesmo modo. Ficaria calado e satisfeito. Que nem uma figura de Buda. Diabos! Era inútil continuar a pensar. Ia levantar-me e voltar para casa. Contudo hesitei. Uma vez que tudo tinha passado dos limites, dos meus limites, não havia motivo algum que me fizesse ir a correr para casa. Encontrava-me sozinho no consultório da minha psicóloga, que não apareceu à hora combinada. Não deixara qualquer recado nem telefonara para avisar que não vinha. Definitivamente algo tinha acontecido. Considerei a possibilidade da psicóloga Mariana Isabel do Rosário ter desaparecido da minha vida. Podia estar morta. O sonho indicava-me que ela precisava de ajuda. Não lhe dei atenção e agora encontrava-me preso no seu consultório. Eu não estava preso. Fora apenas um sonho. A minha mente estava a jogar ao telefone avariado. Estava a entender tudo ao contrário. Ok. Rise and shine. Estava no momento de cometer crimes e vasculhar as gavetas da minha ex-psicóloga. Libertei os olhos da minha escuridão e preparei-me para enfrentar outra escuridão. Mas imaginem qual não foi o meu espanto ao descobrir a rapariga de cabelo azul-celeste sentada à secretária, cujo candeeiro emitia a única fonte de luz do consultório. Claro, tinha-me esquecido. Naquele dia não era a única pessoa à espera da Mariana.

Press Start To Play Again

Parece que adormeci. Quando despertei já era noite cerrada e o consultório não passava de um borrão negro. O mostrador luminoso do meu relógio de pulso indicava que eram quase vinte e uma horas. Tinha o corpo dorido como se tivesse estado a dormir durante muito tempo seguido. Porém não tinham passado mais de duas horas desde que me deitara no divã para repousar um bocado. Voltei a fechar os olhos. Queria relembrar o sonho que tivera. Foi mais enigmático do que o habitual. A aparição da psicóloga em sonhos não costumava trazer consigo uma ameaça ao meu eu onírico. Mas foi o que aconteceu. O seu desaparecimento súbito desencadeou um desenvolvimento que não me era favorável. Uma morte por afogamento não era de todo uma resolução favorável ao enigma que me atormentava a mente. Mas que podia ter feito para evitar esse desfecho? Eu até tentei oferecer-lhe as galochas para que não molhasse os pés. De onde terá despontado aquela torrente invasora? Se ela tivesse esperado as coisas teriam corrido doutra forma. Em vez disso abandonara-me à minha sorte. Uma atitude nada cortês visto que me encontrava no seu consultório. E depois ainda havia a críptica mensagem. Descobri que a Mariana falava inglês quando na realidade nunca tinha ouvido, da sua boca, outra língua senão o português. Give up on beauty. E queria ela que desistisse da beleza? Ora, não percebia porquê. Eu nem sequer me considerava um romântico. Estava a escapar-me algum pormenor. Este sonho, em específico, costumava terminar com uma visão dos seus pés, juntos, calçados com meias pretas, sobre o chão alcatifado cinzento claro. Os pés eram quiméricos pela sua pequenez. Quase chineses. Portanto não eram uma réplica dos pés de Mariana. Que eram, no meu olhar, normais. Parecia-me claro que se ela desaparecera assim, ao fim de tanto tempo, foi porque, das duas uma, ela aborrecera-se com a minha inércia e partira para sempre ou porque eu tinha de abandonar o meu estado psicológico atual, representado pelo consultório, para ir atrás dela. Mas a saída encontrava-se trancada. Isso obrigava-me a procurar uma chave. A chave do consultório da Mariana, quem a guardava, era ela própria. E ela sumira-se, espantosamente, de duas dimensões diferentes, em simultâneo. Um evento inesperado? Ou há muito anunciado? Se foi anunciado então o anúncio chegara-me por uma via pouco ortodoxa. Verdade seja dita, eu não dava um tostão pelos meus sonhos. Eram escassos, fragmentados e obtusos. Impossíveis de alinhavar de forma a compor um linha narrativa credível. No entanto este sonho vinha revestido de uma nitidez desconcertante. Não podia ignorá-lo. Se o fizesse estaria a desrespeitar a minha inteligência. Era algo mais do que rêverie. Era um aviso. O último aviso de uma série de avisos. Eu até que cheguei a manifestar a minha preocupação à psicóloga, relativamente a estes carroceis noturnos, contudo a minha curiosidade não fora bem recebida da parte dela. Em resumo, a cena do costume.
 

“Ultimamente tenho sido atormentado por um sonho recorrente. Quase todas as noites. Desde há um mês para cá. Umas vezes com variações outras inserido noutros sonhos. E sinceramente não sei o que pensar. Nunca me tinha acontecido.”

“O sonho é sobre algo de que se sente à vontade para falar?”

“Infelizmente não. É demasiado pessoal.”

“Compreendo.”

Esperava que ela me ajudasse a desenrolar este novelo mas não. Manteve-se calada. Portanto se queria lançar alguma luz sobre o caso tinha que me esforçar mais. Como a consulta daquele dia tinha tecnicamente acabado eu sentia-me à vontade para insistir no assunto. E apesar de continuarmos nas nossas posições habituais, de psicólogo e cliente, agora era eu que orientava a conversa.

“Um sonho recorrente normalmente significa o quê?”

“Consiste num pedido de ajuda,” respondera ela, abanando ligeiramente a perna direita, que mantinha cruzada, provocando uma oscilação da luz refletida na ponta do seu sapato verde alface. Uma cor que não ia contra a moda mas que não era de acordo com a moda. O preto tinha vingado nesse ano e tinha-se tornado de mau gosto andar de roupas coloridas em sociedade.

“Um pedido de ajuda da pessoa que sonha ou também das pessoas que participam no sonho?”

“Será somente da pessoa que sonha. Se o sonho é seu é você que está em apuros.”
 

O sonho não dava a ideia de que eu e a psicóloga estaríamos em apuros.

“E devo pedir ajuda à pessoa que surge no sonho?”

“A questão que o Joel deve colocar é se a pessoa em questão o pode ajudar e se não procurar outra solução.”

“Fala por experiência própria?”

“Tinha ficado acordado que quando chegasse o momento em que podia começar a fazer-me perguntas pessoais, eu avisaria, recorda-se?

“Vagamente.”

Ela também precisava de ajuda. Foi o que pensei no momento.

“Mas eu respondo. Não. Não tenho sonhos recorrentes portanto não tenho bases para lhe responder.”

“Então quer dizer que nunca precisou de ajuda?”

“Joel, eu não sei onde quer chegar com esse raciocínio. Mas preste atenção ao que lhe vou dizer. Eu não sonho desde os meus doze. Pode não ser normal mas eu nunca senti a falta deles. Se calhar não tenho problemas que me atormentem a mente e por isso essa compensação seja desnecessária.”

Mais uma vez alongara-se mais do que seria necessário para uma psicóloga. Que precisão tinha eu de saber que ela não sonhava desde os doze? Ela por vezes tornava-se inexplicavelmente emocional.

“É óbvio que eu não tenho problemas de maior. Foi precisamente isso que me levou a querer fazer vida de ajudar os outros,” rematou por fim a psicóloga.


Um Espaço De Segundos

Enquanto estava perdido em pensamentos Joel Ilitch adormeceu. E viu-se dentro de um sonho que há muito o atormentava. Envolvia a sua psicóloga Mariana Isabel do Rosário. Uma aparição que se repetia de tempos a tempos. Era apenas um sonho. Nada de grande monta. Um ligeiro risco no CD que não chegava para estragar a música. Porém a história é outra se os riscos se forem acumulando. Com o Homem é a mesma coisa. Os sonhos só podem ser ignorados até ao dia em que eles começam a falar. E desta vez a psicóloga tinha algo para dizer ao Joel adormecido.  

 “You must give up on beauty if you want to live.”
 

Normalmente a Mariana onírica ficava-se inexpressiva a olhar para ele. Mas agora tinha falado e fê-lo em inglês. Apesar deste anglicismo Joel deu pouca importância à mensagem. Ele só queria perguntar-lhe a razão que a levara a manter-se calada durante tanto tempo. Não o fez porque começou a ouvir um ruído que destoava do completo silêncio que costumava reinar no consultório. Pensou que se tratava de água a correr nos canos. Proveniente do andar de cima. Instintivamente olhou para o teto. Mas não. Não tinha sentido visto que aquele era o último andar do prédio. Olhou para o chão e viu que estava coberto de água que entrava por debaixo da porta. Os pés da psicóloga estavam encharcados pois ela encontrava-se descalça. Apenas de meias. Pretas. Já ele estava de galochas. Amarelas. Aprontou-se a descalçá-las para as oferecer à Mariana. Mas em vão. Nesse espaço de segundos ela tinha sumido. Joel encontrava-se sozinho no consultório que rapidamente se enchia de água. Já lhe chegava pelos joelhos. Tentou abrir a porta mas esta estava fechada. Estava preso. Se a água continuasse a subir morreria afogado. Tinha que encontrar uma maneira de sair dali. Ele precisava de uma chave.

Amor Com Amor Se Paga

As sessões a partir daí passaram a decorrer como mandavam os procedimentos. Da minha parte não me lembrei mais de trazer um livro para colocar na estante, nem ela voltou a tocar no assunto. Livros era a última coisa que me ocupava a mente. Durante as primeiras sessões era nos seus pés que pensava. Vestidos de preto sobre a alcatifa. Andava às voltas com esta imagem na minha cabeça. Devia ter dito que estava aborrecido com aquela estante e que já não a podia ver à frente. Só para ter a oportunidade de lhe ver os pés novamente. Nunca referi este pequeno elefante que se pavoneava entre nós. Cheguei inclusive a sonhar várias vezes com a primeira sessão. Ela tirava os sapatos, que curiosamente no sonho eram sempre de modelos diferentes, e ficava defronte a mim. Descalça com as meias pretas sobre a alcatifa cinzenta. Sem dizer nada. O espaço onde decorria o sonho nem sempre era o consultório. Por vezes era no exterior. Como por exemplo uma rua de cidade. E nem sempre éramos só nós. O certo é que o sonho acabava comigo com uma ereção na realidade. Uma ereção bastante incómoda. Nada de tesão pela metade. Quando acordava lá estava ele, o meu pénis a querer rebentar-me os boxers. Rijo como pedra. Mas não sentia necessidade de me aliviar de algum modo. Não estava possuído por qualquer tipo de desejo irresistível. Apenas estranheza.

“E ires às putas?”

“Obrigado, Nuno.”

“Falo a sério.”

Não sabia porque é que continuava a esperar alguma compreensão da parte de um homem como o Nuno. Mas era a ele que me dirigia quando queria falar de intimidades.

“É o que costumo fazer. Se quiseres até te digo onde vou.”

Claro que eu não referi o sonho com a psicóloga. Não queria envolver outra pessoa numa questão que até ver era só minha.

"Então e outras mulheres? Amigas, ex-namoradas, não conheces alguém que te possa ajudar?" 


“Não é desejo sexual.”

Nunca me lembraria de pedir conselhos desta natureza a alguém que só gostava de mulheres que gostassem de levar umas boas palmadas no rabo. No entanto, no início da nossa amizade, cheguei a dar-lhe o benefício da dúvida.

“Conheceste alguma mulher que te tenha marcado? Alguém que possas dizer com alguma certeza que amaste,” perguntei-lhe depois de perceber que ele também era um homem solitário. Portanto uma pessoa que em princípio teria uma experiência amorosa semelhante à minha.

“Sim, a minha mãe.”

"Ok."

A conversa terminou logo ali. E ficara explicada, a meu ver, a sua preferência por casas de alterne. Amor com amor se paga.

“Apenas falo disto porque se trata de uma ereção execionalmente firme. E recorrente. Não vou dizer que é dolorosa mas.”

“Sabias que o Hitler tinha ereções enquanto discursava?”

Desconhecia por completo que haviam registos de tal patologia nesse homem. Mas pelos vistos existiam e o meu chefe estava a par deles. Podiam até ser falsos mas eu não tinha vontade nenhuma de procurar a verdade.


Dogma

Fechei os olhos e tentei não pensar. Trabalhar por conta própria não passava de uma fantasia. 18:40 e nenhum sinal dela.

Entretanto o sol pusera-se e a noite começara a entrar pela janela. As cores esbateram-se mergulhando o consultório na penumbra. As sombras recuaram suavizando as arestas, eliminando os vértices e lançando um manto igual sobre as diferentes geometrias. Eu era apenas mais um corpo no meio de corpos. Um corpo como aquela estante que fora colocada ali de propósito para mim. Funcionava como que um símbolo da minha casa. Para que me mantivesse o mais descontraído possível apesar de me encontrar num sítio estranho. A estante já cá estava na primeira consulta mas não no mesmo sítio. Segundo a psicóloga foi o primeiro objeto para onde eu olhei quando entrei no consultório.

“Os clientes geralmente olham para mim. E só depois em seu redor.”

“Ah, sim? Por alguma razão em especial?”

“As pessoas quando entram em sítios que desconhecem procuram alguém que os possa orientar. Digamos que procuram traços de humanidade.”

“Interessante.”

“Mas pelos vistos a minha humanidade não lhe toca pois prefere o conforto de um bom livro.”

A razão para isso era simples.

“Eu possuo uma biblioteca em casa é por isso.”

“Então para primeira sessão vamos colocar a estante em frente ao divã, onde vai passar a maior parte do tempo. Para que se lembre de casa. Isso fará com que se sinta mais relaxado. Não discuta. Vai ver que irá facilitar a nossa relação.”

E assim foi a primeira sessão. Retirámos os livros das prateleiras praticamente em silêncio pois os livros eram sobre psicologia e eu pouco tinha a dizer sobre isso. Da parte dela também não houve qualquer esforço para fazer conversa. Eu comecei por cima. Chegava-se à última prateleira esticando o braço. A psicóloga começou a retirar os livros por baixo. Juntávamos cinco ou seis livros e púnhamo-los no chão. Formando montinhos. Apesar das linhas simples a madeira castanha escura dava um ar maciço à estante. Parecia ser pesada. O chão era atapetado portanto não valia a pena tentar arrastá-la. A coleção que a psicóloga guardava ali era essencialmente composta por obras de cariz académico. Nada de interessante. Edições normais de capa mole. Mas lá no meio encontrava-se um livro que destoava desse padrão. A sua capa azul era dura e o seu tamanho devia rivalizar com o de uma edição d'A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Intitulava-se Dogma e tinha o título impresso com letras serifadas revestidas a dourado. Em segundo plano, logo a baixo, lia-se As Verdades Intocáveis da Humanidade. Nenhuma ilustração. Apenas ouro sobre azul. Que edição pomposa. Tanto que peguei no livro e proferi um comentário, a meu ver sem cabimento. Mais para quebrar o silêncio do que por verdadeira vontade de conversar.

“Gosta de ler?”

“Nem por isso,” disse ela enquanto punha alguns livros no chão. “Pensa que li esses livros todos?”

“Não vejo porque não. Avaliando a quantidade tem aqui literatura para um ano de leituras. Se tanto. Não é muito.”

“Uau. Você é um verdadeiro devorador de livros. Nunca conseguiria ler isso tudo num ano.”

Ela aproximou-se de mim e retirou-me o Dogma das mãos arrumando-o junto aos outros. Devo dizer que fiquei constrangido com a sua reação. Estaria ela a felicitar-me ou a gozar comigo? Apesar de ter optado pela primeira hipótese, visto que ela era uma psicóloga e não haveria de fazer comentários que pusessem o cliente desconfortável, pensei que a palavra devorador era exagerada.

“Só li alguns. Não sou grande leitora. Apenas coloquei aqui uma estante por motivos estéticos. Achei que ficaria bem uma estante com livros de psicologia num consultório de psicologia.”

Tinha a sua lógica. E não ia contra o que eu fazia em casa. Eu abandonara as leituras mas continuava a gostar de ver os livros nas estantes. Estético.

“Sim. Não fica mal.”

Não ficava mal num consultório de aspeto austero. Diria que estava a olhar uma fotografia a preto e branco. Constatação que me fez reparar nos olhos cinzentos da psicóloga. Despojados de qualquer brilho. Mas porque haveriam de brilhar? Estranhamente eu desejava que eles brilhassem.

“Vamos pôr a estante de maneira a ficar no seu campo de visão quando estiver deitado no divã,” sugeriu a psicóloga.

“Ok.”

Coloquei-me numa posição de maneira a agarrar numa das prateleiras enquanto que a psicóloga descalçou os sapatos de salto alto. Ficando apenas de meias pretas sobre a alcatifa cinzenta.

“É melhor desta forma. Pego aqui,” perguntou enquanto pegava no lado oposto da mesma prateleira onde eu já tinha as mãos.

“Pode ser aí. Quando eu disser três levantamos. Acha que consegue?”

“Vamos ver.”

Tinha certas dúvidas se ela aguentaria com a estante mesmo estando vazia. Mas descobri que havia mais força naqueles braços do que no corpo de muitos homens que eu conhecera. Transportámos a estante de uma assentada.

A sessão terminou depois de termos recolocado os livros na estante. E a concentração que Mariana mostrara na arrumação dos livros deixara-me com a impressão de que foram postos nos mesmos lugares de anteriormente. Pelo menos o Dogma tinha ficado no mesmo local. Disso tinha eu a certeza.

“Pronto, por hoje é tudo. Penso que isto foi um bom ritual de iniciação. Se quiser trazer um livro seu para colocar na estante pode fazê-lo.”

“Para quê?”

“Se quiser que este local seja um sítio confortável para si convém que haja algo seu por aqui.”

“Ok. Vou pensar nisso. Parece-me uma boa ideia.”

A psicóloga abriu a agenda e perguntou-me se na próxima sexta-feira à mesma hora me dava jeito. Respondi que sim. Lembro-me que ela não voltara a calçar-se depois de transportarmos a estante.




Erros De Sincronização

Contra o que seria indicado arrisquei abrir a porta do consultório para espreitar. Estava a ser demasiado ousado e a psicóloga nunca me dera confiança para tais liberdades. Mas uma vez que ela falhara, com a sua parte do contrato, já nada podia ser como dantes. Como tal eu tinha que alterar a minha posição de acordo com as novas exigências. Estava na hora de desarrumar. Rodei a maçaneta que constatei nunca ter sido tocada por mim. Um gesto simples mas sempre executado por Mariana que em todas as sessões desempenhava este papel de porteira. Era ela que abria e era ela que fechava. Sem ela não podia transpor esta fronteira. São estranhas as leis que permitem a convivência entre pessoas diferentes. Regras de um jogo sem vencedores. Mas hoje as regras mudaram. Empurrei a porta e encontrei a previsível sala vazia. Feliz Dia de São Nunca à Tarde. O inesperado realmente acontece. Aparentemente tudo se encontrava no seu devido lugar excepto a psicóloga que se sumira sem deixar rasto. A disposição dos móveis estava igual à última vez que cá entrara. A secretária junto à extensa parede de vidro que fazia de janela, o divã, onde eu me deitava, a poltrona onde ela me ouvia, as paredes vazias e a pequena estante que continuava repleta de livros. As cortinas da janela corridas, como sempre, um pormenor que nunca me permitira vislumbrar a vista do nono andar.

Então isto significava que tinha ocorrido algum imprevisto na vida da minha psicóloga. Ela ainda podia aparecer. O relógio marcava 18:14. Dispus-me a esperar até às dezanove. Depois voltaria para casa e telefonaria mais tarde a perguntar o que se passara. Podia ligar-lhe agora do telemóvel mas se ela estava mesmo ocupada eu não podia fazer nada para a ajudar. Algum acontecimento excecional levara-a a abandonar o consultório sem avisar ninguém. Algo que não estava planeado, tendo em conta, que aquela garota na sala de espera também não estava a par do ocorrido. A Mariana não ia abandonar uma criança à sua sorte. Creio eu.
 

Aproximei-me da secretária à procura de algum indício que lançasse alguma luz sobre este súbito desaparecimento. Não encontrei nada que pudesse apontar para algo repentino. A cadeira encontrava-se arrumada junto à mesa. A agenda estava onde normalmente costumava estar, com a lapiseira castanha que ela usava colocada sobre a capa. O candeeiro metálico de braço ajustável continuava na mesma posição. E o jarro de água com um conjunto de dois copos continuava imaculado sobre o tabuleiro. Olhei para os copos e para o jarro tentando reparar em algum sinal de uso mas nem risco ou mancha era possível encontrar no vidro. Como se nunca tivessem sido usados. E de facto não me recordo dela ter bebido água à minha frente ou de sequer me ter oferecido um copo. As gavetas onde ela guardava as fichas dos clientes também se encontravam fechadas. Não valia a pena tentar abri-las pois deviam estar fechadas à chave. O telefone também não mostrava qualquer sinal de chamadas não atendidas ou mensagens no voice mail. Portanto ela saiu do escritório calmamente. Levando apenas a sua carteira de mão. Ela não usava malas de nenhum tipo. Só me restava ir embora pois não fazia nada ali. O divã, por seu lado, parecia convidar-me para repousar por uns momentos. Estaria o móvel com saudades de sentir o meu corpo. Acabei por aceitar o convite. Precisava de descansar um pouco e ainda não tinha parado desde que saíra do trabalho. Para mais tivera umas chatices com o Nuno e com o diretor do departamento por causa do meu rendimento. Estava a diminuir e isso dificultava a compressão da informação recolhida. Pelos vistos pensamentos fragmentados faziam o computador trabalhar o dobro do tempo para comprimir a mesma quantidade de informação.
 

“Tu és bom. Mas se não manténs a concentração temos de arranjar outro,” atirou-me o Nuno à cara.
 

“E onde é que vais arranjar outro como eu? Um sincronizador não se treina de um dia para o outro. E além disso a maioria não aguenta o processo de adaptação.”

“Não te preocupes. Temos experimentado com mulheres e a sua adaptação às rotinas de sincronização é três vezes mais rápida que nos homens.”

Essa era uma história mal contada. O sistema, de nome Gesti, tinha sido concebido para homens, que inicialmente tinham de corresponder, em 100%, ao perfil de sincronizador estipulado pelo seu criador. Basicamente o sistema para funcionar bem tinha que ter à frente do terminal um utilizador semelhante ao pai do sistema. Ajustes foram feitos para que aceitasse um leque mais vasto de perfis em detrimento da qualidade do output. E foi relativamente fácil fazê-lo com sucesso em relação ao sexo masculino. Quanto à tentativa de introduzir o sexo feminino nesse leque de perfis os resultados não foram bons. Foram de tal maneira maus que levaram ao afastamento imediato das mulheres. Foram feitos esforços no sentido de criar uma versão feminina do software mas aquando da morte do criador só havia um versão beta que deixava muito a desejar. Desde essa altura as coisas não melhoraram apesar do tremendo investimento feito nessa versão. Metade da humanidade ainda não podia sincronizar em segurança. E a questão nem passava pelo hardware pois qualquer pileca informática corria o sistema Gesti.

“E os números da taxa de suicídio? Durante o período de adaptação é de 82% entre as mulheres. Nos homens não passa de dez. Não podem...”

“Podemos. Esses números não são oficiais. São para utilização interna. Além do mais isso é irrelevante. Candidatas não faltam.”

“Isso que dizes é uma barbaride.”

“Pois é. Portanto trata de fazer bem o teu trabalho e salva algumas desta porra. Os chefes querem resultados.”

A conversa de hoje não tivera direito a piadas de mau gosto. O Nuno estava mesmo a falar a sério. E se os chefes queriam resultados, independentemente das consequências, então as tensões diplomáticas, que os jornais noticiavam diariamente, podiam ser sinais de uma nova guerra no horizonte. Seriam capaz de me despedir se eu não entrasse nos eixos? Se fosse despedido podia tentar trabalhar por conta própria. Uma ideia que ponderei várias vezes assim que percebi o bê-á-bá do ofício. Os aparelhos de sincronização não são tecnologia de ponta caso contrário o Estado não estaria tão à-vontade para os comprar. Mas não podia esquecer que o Estado mantinha esse comércio vigiado por uma polícia especial de maneira a monopolizar a sua utilização. Contudo era possível fugir a isso. Bastava comprar um terminal de acesso a um mundo virtual qualquer e modificá-lo de maneira a reunir outro tipo de neuro-dados que não aqueles inicialmente programados. O grande problema de trabalhar a título individual era a encriptação, que era um negócio caro. Não poderia andar a sincronizar como se estivesse a fazer uma vídeo-chamada com um familiar. Tinha que arranjar proteção para as informações reunidas. Aí é que as coisas começavam a ficar perigosas. Limpar-me-iam o sebo em dois tempos só para ficarem com a informação sem terem de a pagar.

Tratavam-se de possibilidades. As possibilidades de um náufrago numa ilha deserta. Rodeado de água a perder de vista. Sonhando para se distrair e não sentir a terra que tremia dia e noite, anunciando. Não penses nisso, Joel. Aproveita o silêncio do consultório da tua psicóloga. Ele não durará para sempre.