Adivinhavam-se tempos difíceis. E a quem podia pedir ajuda? Aos meus pais? Desde que comecei a trabalhar como sincronizador que virtualmente somos desconhecidos. O meu trabalho é tão fora deste mundo que é impossível explicá-lo a uma pessoa comum. O produto da minha atividade era invisível e de natureza conspirativa. Isso obrigava-me a esquivar-me de maneira a não tocar no assunto com os meus pais. A ocultação das minhas rotinas e opiniões não se fez esperar. Os nossos telefonemas agora não passavam de meros olá, adeus, como estás. Isto exclusivamente com a minha mãe. Pois quanto ao meu pai já nem me lembrava da sua voz. Dois anos sem ir a casa danificaram seriamente a minha ténue relação com ele. Creio que nem ele nem eu nos importávamos com essa fatalidade. Além disso o meu pai mostrava os seus primeiros sinais de demência. Segundo a minha mãe ele passava os dias sentado na poltrona a assistir a emissões de ciclismo. Quando estas não haviam, metia-se a pedalar na bicicleta de treino que comprara. Passava horas a fio naquilo. É possível que por esta altura tenha completado as competições ciclísticas de todos os países que existem. Sem sair de casa. Eu bem que lhe dissera que ele precisava de se manter ocupado, e que a idade da reforma não era razão para abandonar o que fazia antigamente. Mas o meu pai fez orelhas moucas. Decidiu-se a vender o restaurante familiar onde tinha colocado quarenta anos da sua vida, o Restaurante Paulo, batizado em homenagem a ele próprio. Hoje ninguém dá o seu nome a estabelecimentos comerciais. Só os saudosistas, sempre com a cabeça noutro tempo que não o deles. Tempos, porventura mais honrados, visto que não há outra palavra para os definir. Quando o resultado do trabalho feito era proporcional ao tempo despendido nele. Essas contas acabaram. Realidades virtuais e computadores quânticos tornaram de vez o trabalho mental no único motor da sociedade. Basicamente hoje em dia correr não nos leva a lado nenhum, a não ser que se queira ser estrela pop ou político. Uns para manterem a perfeição corporal outros para caçarem os melhores cargos. A fronteira que separa essas duas ocupações é atualmente inexistente. Tanto que se tornou regra os candidatos a membros do governo passarem primeiro por escrutínio popular, num qualquer programa televisivo de entretenimento. Creio até que o presidente da câmara atual ficara conhecido por se ter espalhado a andar de skate. O tralho tinha tanta piada que o vídeo correu o mundo pela internet. A popularidade dele era imensa. Uma coisa inacreditável. O talento deste indivíduo era cair com estilo. Chegara a participar como imitador das quedas do Buster Keaton num programa de talentos. Não ganhou, mas foi o suficiente para ser recrutado por um partido político, do arco da governação, que o levou até onde ele se encontra hoje. Se tivesse feito as coisas doutra maneira bem que podia ter arranjado um cargo no governo nacional como não o fez ficou-se pelo regional. O Nuno era fã dele desde o início. De vez em quando lá saia um “O medo é coisa que não me assiste.” Frase da autoria do nosso presidente. É um clássico, costuma dizer o meu chefe.