Quarto Impacto (1/4)

M
ais um dia no paraíso. A imensa floresta continua no mesmo sítio. Composta maioritariamente por abetos e pinheiros que se estendem ininterruptamente até à linha do horizonte. Um verdadeiro oceano de árvores, que nem no pico do inverno ficam despidas, e que na prática me separa do resto do mundo. A paisagem é assombrosa. Daquelas boas para fotografar e meter no instagram com uma hashtag toda hip: #wonderfulearth_hd. Sendo mais preciso, eu encontro-me cercado por uma grande muralha branca. Esta região fica coberta de neve durante todo o ano exceto nos meses de verão. É verdade, eu vivo numa espécie de ilha siberiana. Numa pequena clareira circular no seio da floresta, atravessada a meio por um rio muito negro, que divide o terreno em duas margens idênticas. Eu presentemente ocupo a direita. Não sei ao certo há quanto tempo vivo aqui. Cheguei apenas com as roupas que trazia no corpo, possivelmente no fim da primavera, flutuando rio abaixo em cima de uma placa de gelo que por acaso acostou nesta clareira. Quando acordei não possuía memória alguma do meu passado. Nem do meu tempo, nem da minha casa. Porém sentia-me extraordinário. Bem-disposto, confiante e tranquilo. E leve! Tinha a sensação de ter largado algures uma mochila pesadíssima. Era como se a Terra me tivesse libertado da sua gravidade. Devia ter os meus trinta anos aquando da minha chegada. Sim, creio que era por aí. Mas sinceramente desconheço a minha idade certa, tal como a minha origem. Sei que já fui mais novo do que sou agora pela observação do meu reflexo nas águas do rio. Já não é só a neve que é branca por estes lados. Depois da euforia inicial passei a sentir-me como um verdadeiro náufrago. Uma desafortunada vítima de um terrível desastre que lhe levou tudo o que possuía. Isto se eu possuíra alguma coisa. Enfim, não sei, não me lembro de nada. Nem do meu nome. A melhor maneira de descrever a minha situação é que eu sou um Robinson Crusoé sem memória e sem um sexta-feira. Se há outro ser humano neste mundo, além de mim, eu nunca o vi. Nos primeiros anos ainda me punha a observar o rio durante o degelo a ver se outro como eu aparecia. Em vão. Nem vivalma. Mas se eu existo, e tenho consciência de que sou um homem, que pertenço à família humana, isso só pode significar que existem outros como eu. Que outra hipótese poderia ser considerada? Que eu era único? Um produto inédito do caos? Adão? Cadê Lilith? Eva? Não, que parvoíce. A Razão não me permite aceitar tal absurdo. Com certeza a floresta que me rodeava funcionava como uma barreira natural. E tanto impossibilitava a minha fuga como impedia a entrada de outros. Vocês agora perguntam: Mas tu não estás preso, porque é que não tentas a tua sorte? Se não consegues atravessar a floresta, então, podias fazer uma jangada e lançares-te ao rio. Sim, eu não estou preso. Creio que não. Pelo menos não de uma maneira visível. E, claro, no verão as águas são calmas o suficiente para permitirem a navegação de pequenas embarcações, o que significa que se fizesse uma jangada, mesmo que fosse frágil, poderia descer o rio em direção, suponho, do mar. Porque é que nunca o fiz? Porque, creio, ainda não posso abandonar este lugar. É certo que isto não é uma prisão. Quero que isto fique bem assente. Mas aconteceu que negras visões se abateram sobre a minha mente quando, por carolice, decidi dar um mergulho no rio. Fiquei bastante perturbado pois foram visões semelhantes àquelas que a floresta me ofereceu quando pela primeira vez me aventurei no seu reino. Não se tratam de visões dantescas, ou monstruosas, apenas consistem em imagens que sugerem que eu não estou preparado para partir. Ora, até que esse dia chegue, aparentemente, estou proibido de avançar floresta adentro ou rio abaixo. Isto está escrito, algures na minha mente, como lei absoluta da minha vida neste singelo circulo de perfeita paz. E se desafiar essa vontade julgo que serei duramente castigado. Por mim tudo bem. Eu posso esperar. O que me é necessário à sobrevivência encontra-se facilmente ao meu alcance. A pesca é abundante e os invernos não são rigorosos. Ainda que sejam longos. Além de que na margem onde vivo foi construída uma casa, uma pequena cabana, em madeira. Que só pode ter pertencido a outro pobre coitado como eu. É aí onde eu tenho vivido até hoje. Uma verdadeira cabana modelo. Já vinha equipada com utensílios de cozinha essenciais, como panelas, talheres, pratos e copos. Até fósforos. Encontrei inclusive ferramentas de carpintaria e um machado. Instrumentos bastante úteis para quem vive rodeado de madeira. A casa encontra-se mobilada com uma mesa, quatro cadeiras, uma cama, com lençóis e cobertores, e uma cadeira de baloiço feita por mim. A lareira completa este conjunto acolhedor. E à laia de companhia ainda tenho uma bíblia cristã. Bizarro. Nunca foi aberta. Está como nova. E eu também não me senti tentado a estreá-la. Quer dizer, suponho que seja uma bíblia cristã por causa do crucifixo dourado, estampado no centro da capa mole e preta. Além destas comodidades também tinha fio de pesca com fartura e uma caçadeira com algumas munições. Portanto se me apetecesse caçar tinha como fazê-lo. Já vi por aqui veados, coelhos, javalis, ursos e até lobos a rondar a clareira. Mas os animais mais agressivos não me tentaram atacar. Além disso o rio é rico em peixe e como fonte de alimentação serve perfeitamente. De maneira que ainda não precisei de andar aos tiros. Porém este inverno a temperatura anda anormalmente baixa. Até hoje, o meu casaco de ganga revestido com pêlo tem sido suficiente, mas este ano está mesmo a pedir um casaco mais quente. E tanto penso nisto que já sonhei várias vezes com animais mortos. É apenas um sonho mas isso já representa uma possibilidade, uma promessa que num dia menos bom eu pegarei na caçadeira e matarei um animal indefeso. Esperemos que não. Talvez o verão este ano seja célere e impeça essa tragédia. Em breve cairá a noite. A última luz do dia ilumina o pico mais elevado do Leão Voador, uma montanha solitária, que domina toda a região com a sua coroa de neve permanente. Eu chamo-lhe assim porque me parece um leão a voar acima da paisagem. E voaria, com certeza. Se ganhasse asas.

Continua...