Press Start To Play Again

Parece que adormeci. Quando despertei já era noite cerrada e o consultório não passava de um borrão negro. O mostrador luminoso do meu relógio de pulso indicava que eram quase vinte e uma horas. Tinha o corpo dorido como se tivesse estado a dormir durante muito tempo seguido. Porém não tinham passado mais de duas horas desde que me deitara no divã para repousar um bocado. Voltei a fechar os olhos. Queria relembrar o sonho que tivera. Foi mais enigmático do que o habitual. A aparição da psicóloga em sonhos não costumava trazer consigo uma ameaça ao meu eu onírico. Mas foi o que aconteceu. O seu desaparecimento súbito desencadeou um desenvolvimento que não me era favorável. Uma morte por afogamento não era de todo uma resolução favorável ao enigma que me atormentava a mente. Mas que podia ter feito para evitar esse desfecho? Eu até tentei oferecer-lhe as galochas para que não molhasse os pés. De onde terá despontado aquela torrente invasora? Se ela tivesse esperado as coisas teriam corrido doutra forma. Em vez disso abandonara-me à minha sorte. Uma atitude nada cortês visto que me encontrava no seu consultório. E depois ainda havia a críptica mensagem. Descobri que a Mariana falava inglês quando na realidade nunca tinha ouvido, da sua boca, outra língua senão o português. Give up on beauty. E queria ela que desistisse da beleza? Ora, não percebia porquê. Eu nem sequer me considerava um romântico. Estava a escapar-me algum pormenor. Este sonho, em específico, costumava terminar com uma visão dos seus pés, juntos, calçados com meias pretas, sobre o chão alcatifado cinzento claro. Os pés eram quiméricos pela sua pequenez. Quase chineses. Portanto não eram uma réplica dos pés de Mariana. Que eram, no meu olhar, normais. Parecia-me claro que se ela desaparecera assim, ao fim de tanto tempo, foi porque, das duas uma, ela aborrecera-se com a minha inércia e partira para sempre ou porque eu tinha de abandonar o meu estado psicológico atual, representado pelo consultório, para ir atrás dela. Mas a saída encontrava-se trancada. Isso obrigava-me a procurar uma chave. A chave do consultório da Mariana, quem a guardava, era ela própria. E ela sumira-se, espantosamente, de duas dimensões diferentes, em simultâneo. Um evento inesperado? Ou há muito anunciado? Se foi anunciado então o anúncio chegara-me por uma via pouco ortodoxa. Verdade seja dita, eu não dava um tostão pelos meus sonhos. Eram escassos, fragmentados e obtusos. Impossíveis de alinhavar de forma a compor um linha narrativa credível. No entanto este sonho vinha revestido de uma nitidez desconcertante. Não podia ignorá-lo. Se o fizesse estaria a desrespeitar a minha inteligência. Era algo mais do que rêverie. Era um aviso. O último aviso de uma série de avisos. Eu até que cheguei a manifestar a minha preocupação à psicóloga, relativamente a estes carroceis noturnos, contudo a minha curiosidade não fora bem recebida da parte dela. Em resumo, a cena do costume.
 

“Ultimamente tenho sido atormentado por um sonho recorrente. Quase todas as noites. Desde há um mês para cá. Umas vezes com variações outras inserido noutros sonhos. E sinceramente não sei o que pensar. Nunca me tinha acontecido.”

“O sonho é sobre algo de que se sente à vontade para falar?”

“Infelizmente não. É demasiado pessoal.”

“Compreendo.”

Esperava que ela me ajudasse a desenrolar este novelo mas não. Manteve-se calada. Portanto se queria lançar alguma luz sobre o caso tinha que me esforçar mais. Como a consulta daquele dia tinha tecnicamente acabado eu sentia-me à vontade para insistir no assunto. E apesar de continuarmos nas nossas posições habituais, de psicólogo e cliente, agora era eu que orientava a conversa.

“Um sonho recorrente normalmente significa o quê?”

“Consiste num pedido de ajuda,” respondera ela, abanando ligeiramente a perna direita, que mantinha cruzada, provocando uma oscilação da luz refletida na ponta do seu sapato verde alface. Uma cor que não ia contra a moda mas que não era de acordo com a moda. O preto tinha vingado nesse ano e tinha-se tornado de mau gosto andar de roupas coloridas em sociedade.

“Um pedido de ajuda da pessoa que sonha ou também das pessoas que participam no sonho?”

“Será somente da pessoa que sonha. Se o sonho é seu é você que está em apuros.”
 

O sonho não dava a ideia de que eu e a psicóloga estaríamos em apuros.

“E devo pedir ajuda à pessoa que surge no sonho?”

“A questão que o Joel deve colocar é se a pessoa em questão o pode ajudar e se não procurar outra solução.”

“Fala por experiência própria?”

“Tinha ficado acordado que quando chegasse o momento em que podia começar a fazer-me perguntas pessoais, eu avisaria, recorda-se?

“Vagamente.”

Ela também precisava de ajuda. Foi o que pensei no momento.

“Mas eu respondo. Não. Não tenho sonhos recorrentes portanto não tenho bases para lhe responder.”

“Então quer dizer que nunca precisou de ajuda?”

“Joel, eu não sei onde quer chegar com esse raciocínio. Mas preste atenção ao que lhe vou dizer. Eu não sonho desde os meus doze. Pode não ser normal mas eu nunca senti a falta deles. Se calhar não tenho problemas que me atormentem a mente e por isso essa compensação seja desnecessária.”

Mais uma vez alongara-se mais do que seria necessário para uma psicóloga. Que precisão tinha eu de saber que ela não sonhava desde os doze? Ela por vezes tornava-se inexplicavelmente emocional.

“É óbvio que eu não tenho problemas de maior. Foi precisamente isso que me levou a querer fazer vida de ajudar os outros,” rematou por fim a psicóloga.


Um Espaço De Segundos

Enquanto estava perdido em pensamentos Joel Ilitch adormeceu. E viu-se dentro de um sonho que há muito o atormentava. Envolvia a sua psicóloga Mariana Isabel do Rosário. Uma aparição que se repetia de tempos a tempos. Era apenas um sonho. Nada de grande monta. Um ligeiro risco no CD que não chegava para estragar a música. Porém a história é outra se os riscos se forem acumulando. Com o Homem é a mesma coisa. Os sonhos só podem ser ignorados até ao dia em que eles começam a falar. E desta vez a psicóloga tinha algo para dizer ao Joel adormecido.  

 “You must give up on beauty if you want to live.”
 

Normalmente a Mariana onírica ficava-se inexpressiva a olhar para ele. Mas agora tinha falado e fê-lo em inglês. Apesar deste anglicismo Joel deu pouca importância à mensagem. Ele só queria perguntar-lhe a razão que a levara a manter-se calada durante tanto tempo. Não o fez porque começou a ouvir um ruído que destoava do completo silêncio que costumava reinar no consultório. Pensou que se tratava de água a correr nos canos. Proveniente do andar de cima. Instintivamente olhou para o teto. Mas não. Não tinha sentido visto que aquele era o último andar do prédio. Olhou para o chão e viu que estava coberto de água que entrava por debaixo da porta. Os pés da psicóloga estavam encharcados pois ela encontrava-se descalça. Apenas de meias. Pretas. Já ele estava de galochas. Amarelas. Aprontou-se a descalçá-las para as oferecer à Mariana. Mas em vão. Nesse espaço de segundos ela tinha sumido. Joel encontrava-se sozinho no consultório que rapidamente se enchia de água. Já lhe chegava pelos joelhos. Tentou abrir a porta mas esta estava fechada. Estava preso. Se a água continuasse a subir morreria afogado. Tinha que encontrar uma maneira de sair dali. Ele precisava de uma chave.

Amor Com Amor Se Paga

As sessões a partir daí passaram a decorrer como mandavam os procedimentos. Da minha parte não me lembrei mais de trazer um livro para colocar na estante, nem ela voltou a tocar no assunto. Livros era a última coisa que me ocupava a mente. Durante as primeiras sessões era nos seus pés que pensava. Vestidos de preto sobre a alcatifa. Andava às voltas com esta imagem na minha cabeça. Devia ter dito que estava aborrecido com aquela estante e que já não a podia ver à frente. Só para ter a oportunidade de lhe ver os pés novamente. Nunca referi este pequeno elefante que se pavoneava entre nós. Cheguei inclusive a sonhar várias vezes com a primeira sessão. Ela tirava os sapatos, que curiosamente no sonho eram sempre de modelos diferentes, e ficava defronte a mim. Descalça com as meias pretas sobre a alcatifa cinzenta. Sem dizer nada. O espaço onde decorria o sonho nem sempre era o consultório. Por vezes era no exterior. Como por exemplo uma rua de cidade. E nem sempre éramos só nós. O certo é que o sonho acabava comigo com uma ereção na realidade. Uma ereção bastante incómoda. Nada de tesão pela metade. Quando acordava lá estava ele, o meu pénis a querer rebentar-me os boxers. Rijo como pedra. Mas não sentia necessidade de me aliviar de algum modo. Não estava possuído por qualquer tipo de desejo irresistível. Apenas estranheza.

“E ires às putas?”

“Obrigado, Nuno.”

“Falo a sério.”

Não sabia porque é que continuava a esperar alguma compreensão da parte de um homem como o Nuno. Mas era a ele que me dirigia quando queria falar de intimidades.

“É o que costumo fazer. Se quiseres até te digo onde vou.”

Claro que eu não referi o sonho com a psicóloga. Não queria envolver outra pessoa numa questão que até ver era só minha.

"Então e outras mulheres? Amigas, ex-namoradas, não conheces alguém que te possa ajudar?" 


“Não é desejo sexual.”

Nunca me lembraria de pedir conselhos desta natureza a alguém que só gostava de mulheres que gostassem de levar umas boas palmadas no rabo. No entanto, no início da nossa amizade, cheguei a dar-lhe o benefício da dúvida.

“Conheceste alguma mulher que te tenha marcado? Alguém que possas dizer com alguma certeza que amaste,” perguntei-lhe depois de perceber que ele também era um homem solitário. Portanto uma pessoa que em princípio teria uma experiência amorosa semelhante à minha.

“Sim, a minha mãe.”

"Ok."

A conversa terminou logo ali. E ficara explicada, a meu ver, a sua preferência por casas de alterne. Amor com amor se paga.

“Apenas falo disto porque se trata de uma ereção execionalmente firme. E recorrente. Não vou dizer que é dolorosa mas.”

“Sabias que o Hitler tinha ereções enquanto discursava?”

Desconhecia por completo que haviam registos de tal patologia nesse homem. Mas pelos vistos existiam e o meu chefe estava a par deles. Podiam até ser falsos mas eu não tinha vontade nenhuma de procurar a verdade.


Dogma

Fechei os olhos e tentei não pensar. Trabalhar por conta própria não passava de uma fantasia. 18:40 e nenhum sinal dela.

Entretanto o sol pusera-se e a noite começara a entrar pela janela. As cores esbateram-se mergulhando o consultório na penumbra. As sombras recuaram suavizando as arestas, eliminando os vértices e lançando um manto igual sobre as diferentes geometrias. Eu era apenas mais um corpo no meio de corpos. Um corpo como aquela estante que fora colocada ali de propósito para mim. Funcionava como que um símbolo da minha casa. Para que me mantivesse o mais descontraído possível apesar de me encontrar num sítio estranho. A estante já cá estava na primeira consulta mas não no mesmo sítio. Segundo a psicóloga foi o primeiro objeto para onde eu olhei quando entrei no consultório.

“Os clientes geralmente olham para mim. E só depois em seu redor.”

“Ah, sim? Por alguma razão em especial?”

“As pessoas quando entram em sítios que desconhecem procuram alguém que os possa orientar. Digamos que procuram traços de humanidade.”

“Interessante.”

“Mas pelos vistos a minha humanidade não lhe toca pois prefere o conforto de um bom livro.”

A razão para isso era simples.

“Eu possuo uma biblioteca em casa é por isso.”

“Então para primeira sessão vamos colocar a estante em frente ao divã, onde vai passar a maior parte do tempo. Para que se lembre de casa. Isso fará com que se sinta mais relaxado. Não discuta. Vai ver que irá facilitar a nossa relação.”

E assim foi a primeira sessão. Retirámos os livros das prateleiras praticamente em silêncio pois os livros eram sobre psicologia e eu pouco tinha a dizer sobre isso. Da parte dela também não houve qualquer esforço para fazer conversa. Eu comecei por cima. Chegava-se à última prateleira esticando o braço. A psicóloga começou a retirar os livros por baixo. Juntávamos cinco ou seis livros e púnhamo-los no chão. Formando montinhos. Apesar das linhas simples a madeira castanha escura dava um ar maciço à estante. Parecia ser pesada. O chão era atapetado portanto não valia a pena tentar arrastá-la. A coleção que a psicóloga guardava ali era essencialmente composta por obras de cariz académico. Nada de interessante. Edições normais de capa mole. Mas lá no meio encontrava-se um livro que destoava desse padrão. A sua capa azul era dura e o seu tamanho devia rivalizar com o de uma edição d'A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Intitulava-se Dogma e tinha o título impresso com letras serifadas revestidas a dourado. Em segundo plano, logo a baixo, lia-se As Verdades Intocáveis da Humanidade. Nenhuma ilustração. Apenas ouro sobre azul. Que edição pomposa. Tanto que peguei no livro e proferi um comentário, a meu ver sem cabimento. Mais para quebrar o silêncio do que por verdadeira vontade de conversar.

“Gosta de ler?”

“Nem por isso,” disse ela enquanto punha alguns livros no chão. “Pensa que li esses livros todos?”

“Não vejo porque não. Avaliando a quantidade tem aqui literatura para um ano de leituras. Se tanto. Não é muito.”

“Uau. Você é um verdadeiro devorador de livros. Nunca conseguiria ler isso tudo num ano.”

Ela aproximou-se de mim e retirou-me o Dogma das mãos arrumando-o junto aos outros. Devo dizer que fiquei constrangido com a sua reação. Estaria ela a felicitar-me ou a gozar comigo? Apesar de ter optado pela primeira hipótese, visto que ela era uma psicóloga e não haveria de fazer comentários que pusessem o cliente desconfortável, pensei que a palavra devorador era exagerada.

“Só li alguns. Não sou grande leitora. Apenas coloquei aqui uma estante por motivos estéticos. Achei que ficaria bem uma estante com livros de psicologia num consultório de psicologia.”

Tinha a sua lógica. E não ia contra o que eu fazia em casa. Eu abandonara as leituras mas continuava a gostar de ver os livros nas estantes. Estético.

“Sim. Não fica mal.”

Não ficava mal num consultório de aspeto austero. Diria que estava a olhar uma fotografia a preto e branco. Constatação que me fez reparar nos olhos cinzentos da psicóloga. Despojados de qualquer brilho. Mas porque haveriam de brilhar? Estranhamente eu desejava que eles brilhassem.

“Vamos pôr a estante de maneira a ficar no seu campo de visão quando estiver deitado no divã,” sugeriu a psicóloga.

“Ok.”

Coloquei-me numa posição de maneira a agarrar numa das prateleiras enquanto que a psicóloga descalçou os sapatos de salto alto. Ficando apenas de meias pretas sobre a alcatifa cinzenta.

“É melhor desta forma. Pego aqui,” perguntou enquanto pegava no lado oposto da mesma prateleira onde eu já tinha as mãos.

“Pode ser aí. Quando eu disser três levantamos. Acha que consegue?”

“Vamos ver.”

Tinha certas dúvidas se ela aguentaria com a estante mesmo estando vazia. Mas descobri que havia mais força naqueles braços do que no corpo de muitos homens que eu conhecera. Transportámos a estante de uma assentada.

A sessão terminou depois de termos recolocado os livros na estante. E a concentração que Mariana mostrara na arrumação dos livros deixara-me com a impressão de que foram postos nos mesmos lugares de anteriormente. Pelo menos o Dogma tinha ficado no mesmo local. Disso tinha eu a certeza.

“Pronto, por hoje é tudo. Penso que isto foi um bom ritual de iniciação. Se quiser trazer um livro seu para colocar na estante pode fazê-lo.”

“Para quê?”

“Se quiser que este local seja um sítio confortável para si convém que haja algo seu por aqui.”

“Ok. Vou pensar nisso. Parece-me uma boa ideia.”

A psicóloga abriu a agenda e perguntou-me se na próxima sexta-feira à mesma hora me dava jeito. Respondi que sim. Lembro-me que ela não voltara a calçar-se depois de transportarmos a estante.




Erros De Sincronização

Contra o que seria indicado arrisquei abrir a porta do consultório para espreitar. Estava a ser demasiado ousado e a psicóloga nunca me dera confiança para tais liberdades. Mas uma vez que ela falhara, com a sua parte do contrato, já nada podia ser como dantes. Como tal eu tinha que alterar a minha posição de acordo com as novas exigências. Estava na hora de desarrumar. Rodei a maçaneta que constatei nunca ter sido tocada por mim. Um gesto simples mas sempre executado por Mariana que em todas as sessões desempenhava este papel de porteira. Era ela que abria e era ela que fechava. Sem ela não podia transpor esta fronteira. São estranhas as leis que permitem a convivência entre pessoas diferentes. Regras de um jogo sem vencedores. Mas hoje as regras mudaram. Empurrei a porta e encontrei a previsível sala vazia. Feliz Dia de São Nunca à Tarde. O inesperado realmente acontece. Aparentemente tudo se encontrava no seu devido lugar excepto a psicóloga que se sumira sem deixar rasto. A disposição dos móveis estava igual à última vez que cá entrara. A secretária junto à extensa parede de vidro que fazia de janela, o divã, onde eu me deitava, a poltrona onde ela me ouvia, as paredes vazias e a pequena estante que continuava repleta de livros. As cortinas da janela corridas, como sempre, um pormenor que nunca me permitira vislumbrar a vista do nono andar.

Então isto significava que tinha ocorrido algum imprevisto na vida da minha psicóloga. Ela ainda podia aparecer. O relógio marcava 18:14. Dispus-me a esperar até às dezanove. Depois voltaria para casa e telefonaria mais tarde a perguntar o que se passara. Podia ligar-lhe agora do telemóvel mas se ela estava mesmo ocupada eu não podia fazer nada para a ajudar. Algum acontecimento excecional levara-a a abandonar o consultório sem avisar ninguém. Algo que não estava planeado, tendo em conta, que aquela garota na sala de espera também não estava a par do ocorrido. A Mariana não ia abandonar uma criança à sua sorte. Creio eu.
 

Aproximei-me da secretária à procura de algum indício que lançasse alguma luz sobre este súbito desaparecimento. Não encontrei nada que pudesse apontar para algo repentino. A cadeira encontrava-se arrumada junto à mesa. A agenda estava onde normalmente costumava estar, com a lapiseira castanha que ela usava colocada sobre a capa. O candeeiro metálico de braço ajustável continuava na mesma posição. E o jarro de água com um conjunto de dois copos continuava imaculado sobre o tabuleiro. Olhei para os copos e para o jarro tentando reparar em algum sinal de uso mas nem risco ou mancha era possível encontrar no vidro. Como se nunca tivessem sido usados. E de facto não me recordo dela ter bebido água à minha frente ou de sequer me ter oferecido um copo. As gavetas onde ela guardava as fichas dos clientes também se encontravam fechadas. Não valia a pena tentar abri-las pois deviam estar fechadas à chave. O telefone também não mostrava qualquer sinal de chamadas não atendidas ou mensagens no voice mail. Portanto ela saiu do escritório calmamente. Levando apenas a sua carteira de mão. Ela não usava malas de nenhum tipo. Só me restava ir embora pois não fazia nada ali. O divã, por seu lado, parecia convidar-me para repousar por uns momentos. Estaria o móvel com saudades de sentir o meu corpo. Acabei por aceitar o convite. Precisava de descansar um pouco e ainda não tinha parado desde que saíra do trabalho. Para mais tivera umas chatices com o Nuno e com o diretor do departamento por causa do meu rendimento. Estava a diminuir e isso dificultava a compressão da informação recolhida. Pelos vistos pensamentos fragmentados faziam o computador trabalhar o dobro do tempo para comprimir a mesma quantidade de informação.
 

“Tu és bom. Mas se não manténs a concentração temos de arranjar outro,” atirou-me o Nuno à cara.
 

“E onde é que vais arranjar outro como eu? Um sincronizador não se treina de um dia para o outro. E além disso a maioria não aguenta o processo de adaptação.”

“Não te preocupes. Temos experimentado com mulheres e a sua adaptação às rotinas de sincronização é três vezes mais rápida que nos homens.”

Essa era uma história mal contada. O sistema, de nome Gesti, tinha sido concebido para homens, que inicialmente tinham de corresponder, em 100%, ao perfil de sincronizador estipulado pelo seu criador. Basicamente o sistema para funcionar bem tinha que ter à frente do terminal um utilizador semelhante ao pai do sistema. Ajustes foram feitos para que aceitasse um leque mais vasto de perfis em detrimento da qualidade do output. E foi relativamente fácil fazê-lo com sucesso em relação ao sexo masculino. Quanto à tentativa de introduzir o sexo feminino nesse leque de perfis os resultados não foram bons. Foram de tal maneira maus que levaram ao afastamento imediato das mulheres. Foram feitos esforços no sentido de criar uma versão feminina do software mas aquando da morte do criador só havia um versão beta que deixava muito a desejar. Desde essa altura as coisas não melhoraram apesar do tremendo investimento feito nessa versão. Metade da humanidade ainda não podia sincronizar em segurança. E a questão nem passava pelo hardware pois qualquer pileca informática corria o sistema Gesti.

“E os números da taxa de suicídio? Durante o período de adaptação é de 82% entre as mulheres. Nos homens não passa de dez. Não podem...”

“Podemos. Esses números não são oficiais. São para utilização interna. Além do mais isso é irrelevante. Candidatas não faltam.”

“Isso que dizes é uma barbaride.”

“Pois é. Portanto trata de fazer bem o teu trabalho e salva algumas desta porra. Os chefes querem resultados.”

A conversa de hoje não tivera direito a piadas de mau gosto. O Nuno estava mesmo a falar a sério. E se os chefes queriam resultados, independentemente das consequências, então as tensões diplomáticas, que os jornais noticiavam diariamente, podiam ser sinais de uma nova guerra no horizonte. Seriam capaz de me despedir se eu não entrasse nos eixos? Se fosse despedido podia tentar trabalhar por conta própria. Uma ideia que ponderei várias vezes assim que percebi o bê-á-bá do ofício. Os aparelhos de sincronização não são tecnologia de ponta caso contrário o Estado não estaria tão à-vontade para os comprar. Mas não podia esquecer que o Estado mantinha esse comércio vigiado por uma polícia especial de maneira a monopolizar a sua utilização. Contudo era possível fugir a isso. Bastava comprar um terminal de acesso a um mundo virtual qualquer e modificá-lo de maneira a reunir outro tipo de neuro-dados que não aqueles inicialmente programados. O grande problema de trabalhar a título individual era a encriptação, que era um negócio caro. Não poderia andar a sincronizar como se estivesse a fazer uma vídeo-chamada com um familiar. Tinha que arranjar proteção para as informações reunidas. Aí é que as coisas começavam a ficar perigosas. Limpar-me-iam o sebo em dois tempos só para ficarem com a informação sem terem de a pagar.

Tratavam-se de possibilidades. As possibilidades de um náufrago numa ilha deserta. Rodeado de água a perder de vista. Sonhando para se distrair e não sentir a terra que tremia dia e noite, anunciando. Não penses nisso, Joel. Aproveita o silêncio do consultório da tua psicóloga. Ele não durará para sempre.

De Azul Em Azul

Bati à porta do consultório. Normalmente era obrigado a esperar alguns segundos pela psicóloga. Imaginava-a a alisar o vestido, a verificar a fina camada de base, e só depois disso, com passos estudados, a rodear a secretária e a deslocar-se até à porta negra para finalmente pousar a mão na maçaneta metálica. Nunca conseguia ouvir os passos dela pois o sistema de isolamento sonoro funcionava na perfeição com o chão alcatifado.

A psicóloga estava a demorar mais do que o habitual. Será que não ouviu? Ponderei voltar a bater mas a insistência seria ridícula, um ato infantil de baixa categoria, pois não havia hipótese dela não ter ouvido. Se ela ainda não veio abrir é porque está a meio de algum assunto importante. Confirmei as horas, não fosse o caso de eu ter chegado demasiado cedo. O mostrador digital do relógio Casio com calculadora marcava 17:54. O que significava que eu estava adiantado. Antecipei-me. Mas não muito. São coisas que acontecem. E ela não me permitia entrar antes das dezoito. Decidi percorrer o corredor até à entrada e voltar. Para fazer tempo. Ao chegar à porta espreitei pelo visor para ver se estava alguém lá fora. Um gesto absurdo executado com o intuito de forçar o tempo a avançar. O relógio apitou indicando que eram agora dezoito horas. Olhei para a porta do consultório esperando que a porta se abrisse revelando finalmente a figura de Mariana. Mas nada. Fitei o negro da porta e ele fitou-me. Então não me restava outra alternativa senão ser inconveniente. Ao caminhar de volta olhei de soslaio para o interior da sala de espera. E qual não foi o meu espanto ao ver uma garota sentada no sofá a fazer zapping? Donde é que terá vindo esta garota? Ela não estava aqui há instantes. Tenho a certeza. Apresentava o cabelo pintado de azul-celeste, curto, sem chegar ao pescoço, penteado de maneira a envolver-lhe a face. Estava totalmente vestida de cinzento, envergando uma camisola, que era grande demais nos braços, pois as mangas cobriam-lhe as mãos. Calçava umas sapatilhas de basquetebol decoradas com linhas coloridas. Pelo aspeto não devia ter mais de treze anos.

“Desculpa. Olá,” disse sem chegar a entrar na sala.

A rapariga parou de fazer zapping, deixando a televisão num canal de música, e olhou para mim.

“Olá.”

“Vens para alguma consulta?”

“Não.”

“Então...”

“Estou só à espera. A Mariana disse para vir cá ter. Suponho que sejas o Joel.”

“Como é que sabes o meu nome?”

À primeira vista ninguém encontraria nada de estranho nesta miúda. Seria considerada bizarra, apenas, por causa do seu cabelo azul-celeste. Mas analisando atentamente a sua face depressa se notaria que ela não demonstrava qualquer expressão. Dava a sensação que ela envergava uma máscara. Apenas a boca se movia não mexendo os demais músculos da cara.

“A Mariana disse-me que ia dar uma consulta fora do horário a um senhor chamado Joel.”

A sua face era absolutamente inexpressiva. A rapariga estava a olhar para mim mas creio que se estivesse a olhar para uma parede que a expressão seria a mesma. Era como se estivesse a olhar para o meu interior e não especificamente para a minha cara. Mas quando é que ela poderia ter entrado? Era humanamente impossível que ela tivesse entrado no curto espaço de tempo que eu demorei a percorrer o corredor, a bater à porta e a regressar à entrada. Teria reparado. Para ela conseguir realizar tal feito teria que ter vindo colada a mim. E sinceramente não me lembro de ter partilhado o elevador com uma garota com o cabelo azul. Ela podia ter subido no segundo elevador se este não estivesse avariado. Portanto sobravam as escadas. Não. Era impossível. A miúda devia encontrar-se já dentro do apartamento aquando da minha chegada.

“Bom, está bem. Então vou para a minha consulta.”

“Ok. Have fun.”

“Obrigado.”

Definitivamente era um dia sui generis. Cheguei adiantado, a psicóloga não me abria a porta e encontrei uma miúda que mais parecia uma boneca.

Ao chegar à porta do consultório voltei a bater. Nada. Será que ela não está cá? Era possível, e ao mesmo tempo improvável porque tinha a garota à sua espera. Convenhamos que ela podia ter saído e se atrasara. Sim. Podia muito bem ser esse o caso.

Puer Aeternus

“Queria marcar uma consulta, pode ser?”

Ouvi o deslizar de algo a ser engolido e depois mastigado. Algum tipo de massa. Não restavam dúvidas ela estava a comer. E para produzir aquele ruído a comida devia estar bem temperada. Creio que se tratava de comida chinesa. Excluí logo a italiana por não ter ouvido os talheres a bater no prato. Portanto ela estaria a usar pauzinhos. Instrumento que podia ser adotado pelos ocidentais. Seria um avanço civilizacional. Uma vez que os talheres não passam de armas mortíferas em miniatura. Uma faca e um garfo, na mão de quem perceba do assunto, e temos uma família assassinada. Os pauzinhos possivelmente serviam parar tirar a comida de uma embalagem de cartão. Porém isto é pura especulação. O prato podia ser de plástico. Os talheres também. Daí não produzirem o barulho esperado. Talvez um dia saberei o que, de facto, estava a minha psicóloga a comer, mas por enquanto irei considerar que era mesmo comida chinesa.

“Ok. O senhor Joel quer marcar uma consulta. Tem algum dia em mente?

“Pode ser em qualquer dia da semana.”

“E a que horas lhe dá jeito?

“Depois da cinco.”

Novamente o som de comida a ser engolida e mastigada.

“Depois das dezassete não atendo.”

“E no fim de semana?”

“Também não dou consultas no fim de semana.”

Do outro lado da linha veio o som de um líquido a correr por uma palhinha. Não sei que procedimento era este, de comer, enquanto se atendia um possível cliente. De certeza que não era para impressionar pelo profissionalismo, aliás, eu estava a ficar um bocado incomodado com este insólito procedimento. Começava a desejar não ter nada com esta mulher. Nem queria saber do seu consultório no mesmo prédio onde eu morava. Nem que ela fizesse consultas ao domicílio e me passasse a roupa a ferro.

“Como você é meu vizinho, isto apesar de nunca ter correspondido aos meus cumprimentos, irei ponderar sobre dar-lhe uma consulta fora do meu horário de atendimento. Não lhe posso dar certezas, de momento, mas telefonarei noutra altura para confirmar.”

A psicóloga telefonou-me, horas depois, quando eu já não contava com qualquer telefonema, mais precisamente às cinco da manhã. Eu já estava de pé portanto não fiquei chateado por uma hipotética interrupção do sono. Era normal, para mim, acordar antes do sol nascer. Somente questionei-me sobre que tipo de pessoa seria esta Mariana Isabel do Rosário, para fazer uma chamada, àquela hora da madrugada, para confirmar uma consulta.

“Estou?”

“Estou, bom dia, estou a falar com o senhor Joel?”

“É o próprio.”

“Daqui fala a psicóloga Mariana Isabel do Rosário.”

Ela referira-se a si própria pelo nome completo. Devia gostar mesmo do seu nome.

“Era então para marcarmos uma consulta para quarta-feira às dezoito. Pode ser?

“Quarta não dá.”

Era dia de jantar com o Nuno. Ritual mensal criado por iniciativa dele. Aliás, a nossa amizade existia unicamente por iniciativa dele. Desta vez combináramos ir a uma marisqueira. Escolhida por ele. Coisa fina. Já quando era eu a escolher o local, combinava sempre numa tasca que existia logo ao lado da Câmara Municipal. Dava-me bem com o dono e a comida estava sempre no ponto. Nada a ver com dinheiro. Apenas preferia espaços à minha medida. Mas como desta vez o mestre de cerimónias era o Nuno, o local tinha de ser obrigatoriamente um restaurante grande e dispendioso. Creio que ele também não pensava em dinheiro. Era mais pelo espetáculo.

“Sabes do que é que eu gosto no camarão? De lhe chupar a cabeça.”

Sei que ouvirei tiradas destas. Pois o Nuno era um poço sem fundo de frivolidades pornográficas. Portava-se tal e qual um miúdo maravilhado pelo poder dos palavrões proferidos a meio de uma conversa inteligente.

“Foda-se.”

“O que é que disse?”

“Nada. Não era consigo. E sexta-feira à mesma hora?”

“Dá.”

“Então fica combinado sexta-feira pelas dezoito.”

“Está bem.”

“O senhor Joel podia indicar-me o último nome?”

“Ilitch. I, L.”

“Ilitch. Eu percebi.”

Inédito. Em trinta e oito anos de existência foi a primeira pessoa que apanhou o meu nome. Geralmente pediam-me para soletrar ou entendiam outro nome como Ilídio.

“Então, senhor Joel Ilitch, até sexta.”
 

“Espere.”

“O quê?”

Entretanto a cafeteira italiana, que tinha posto ao lume, começara a fumegar e a chiar indicando que o café estava pronto. Desliguei o bico do fogão.

“Queria fazer-lhe uma pergunta. Já viu as horas?”

“Sim. São cinco e vinte.”

“Certo. E é hábito seu telefonar aos seus clientes durante a madrugada?”

Creio que ela levou a mal esta pergunta porque ficámos não menos de trinta segundos pendurados, em completo silêncio. Foi o tempo de eu preparar o café com dois terços de leite e quatro adoçantes.

“Ainda está aí? Aconteceu alguma coisa?”

“Ao chegar ao prédio vi luz no seu apartamento, por isso presumi que estava acordado. E visto que vive sozinho um telefonema a esta hora não iria incomodar.”

“Eu não estou incomodado com o seu telefonema. Apenas surpreendido e curioso.”

“Curioso?”

“Sobre os motivos que a trazem a esta hora ao seu consultório.”

“Você não tem nada com isso.”

“Certo. Mas tem que admitir que é estranho. Não acha?”

“Sabe, o apartamento é meu. Tenho uma chave que me permite entrar às horas que eu quiser. Além disso eu guardo os ficheiros dos clientes no consultório. E hoje necessitei de verificar a ficha de um, o que me obrigou a vir aqui a esta hora. Acontece. Por coincidência encontrei-o acordado e decidi telefonar-lhe. Simples. Isto porque sabia que não seria transtorno algum para quem sofre de insónias. Percebeu?”

“Sim.”

“Ótimo. Está mais descansado? Acha que ainda consegue ter um bom dia e não desistir da consulta de sexta-feira?"

“Lamento se fui indiscreto.”

“Pessoas com o seu temperamento formam imagens erradas das pessoas. Apenas para se assegurarem que estão corretos e que a razão está do vosso lado. Mas eu não gosto que pensem mal de mim.”

“Asseguro-lhe que nunca pensaria isso de si.”

Afirmação que não correspondia à verdade pois por momentos considerei que ela poderia ser uma prostituta. Quer dizer, vir às cinco da manhã verificar um ficheiro de um cliente poderia ser a codificação para uma atividade pouco ortodoxa. Porquê? Sei lá. Eu penso nestas coisas. E não consigo evitá-lo.

“Você, em vez de juntar leite ao café, faria melhor se lhe juntasse aguardente. Faria-lhe bem beber um pouco de álcool. Desperta o corpo e acalma a mente. Considere isto um conselho grátis. Até sexta.”

A chamada caiu e eu fiquei ali com a caneca de café na mão, a olhar para o telefone, e a imaginar que género de psicóloga aconselharia um cliente a beber pela manhã. Nem me passou pela cabeça questionar como é que a psicóloga Mariana Isabel do Rosário, com o consultório no nono direito, do prédio número 66, sabia que eu bebia café com leite.