Terceiro Impacto


“Vem cá à dona.”

Mas qual vem cá, qual carapuça. Por acaso sou um cão? Hum, era possível. A linha do horizonte tinha ficado subitamente mais próxima da linha do meu olhar. Portanto tinha diminuído de estatura. Além disso sentia um desejo insano de perseguir a cauda... Quatro patas, check, pelo castanho claro, check, focinho preto, check, cauda, check. Ora bolas. Xeque-mate. Então o paraíso consistia nisto? Podiam ter avisado que iria viver o afterlife na forma de cão. Teria me preparado de alguma forma. Teria lido mais livros. Mas pronto, enfim, poderia ter sido pior.

De que forma poderia ter sido pior? Bom, não sei ao certo. É a primeira vez que isto me acontece. A transmigração da alma já foi um assunto levado mais a sério, discutido pelos maiores sábios de diversas especialidades, mas atualmente não se discute isso em público. De maneira que tenho pouco conhecimento sobre as possíveis transformações espirituais provocadas pela morte corporal. Provavelmente a maioria de nós continua a sua existência como humano. Por isso ninguém pensa nisto. E aqueles que mudam de forma após a morte não voltam para contar a história. Caso contrário, tenho a certeza, já teríamos tomado consciência destas transformações. Deve estar tudo relacionado com o nosso espírito, ou mais concretamente, com o nosso animal interior.

"Vem à dona!"

Espera aí, ó Dona. Deixa-me acabar o raciocínio. Quem nunca simpatizou com um gorila? Ou com uma tartaruga? E quem diz estes diz outros seres vivos. Até insetos. Claro que não desejamos viver como eles mas isso não nos impede de secretamente desejarmos as suas qualidades: a sua força, a sua agilidade, a sua beleza, etc. Afinal se as formas de vida deste planeta partilham invariavelmente algum ADN entre si, então não será absurdo pensarmos que o Homem tem um pouco de abelha ou gafanhoto dentro dele. E a mesma coisa em sentido inverso pois, segundo este raciocínio, um sapo ou um gato também terão o seu homem interior.
 
“Já te disse para vires à dona!”

Olha-me esta. Já ouvi! Cá estou eu novamente no meio da neve. Estariam as pradarias da Terra todas ocupadas? Tinha mesmo que vir parar a um frigorífico? Que sorte malvada. A poucos metros a mulher, que aparentemente era uma Dona, esperava que eu obedecesse à sua ordem. Encontrava-se vestida de negro. Tapada dos pés à cabeça. Até o seu cabelo estava coberto por um véu. Estaria de luto? Eu não sentia vontade nenhuma de lhe obedecer. Qualquer coisa me dizia que deveria temê-la. Mesmo assim aproximei-me a correr. A curiosidade canina era mais forte do que o meu medo. Ela agachou-se e afagou-me carinhosamente enquanto eu me pus a lamber-lhe o rosto. Este parecia-me insolitamente familiar. Niil? Niil és mesmo tu? Estás mais velha! Que fizeste ao teu cabelo? Pintaste-o de preto? E estás assim vestida para quê? Alguém morreu? Sou eu o Joel! Agora sou um cão!

“Good boy. Agora dá a pata.” 


É escusado dizer que ela não percebeu patavina do que eu disse. Portanto parei de ladrar e acedi ao seu pedido.

“Não é essa! A outra pata.”

Levantei então a pata direita, que se transformou subitamente numa mão humana. Weird. Niil, não se mostrando incomodada com isso, ofereceu-me uma pistola Luger que, noutra vida, se bem me recordo, pertencera à minha psicóloga.

“Agora faz como eu te ensinei.”

O que é que tu me ensinaste? Não percebo o que queres que eu faça com esta arma.

“Só tens de puxar o gatilho.”


Niil pegou-me na mão e virou a Luger na direção do meu focinho. Vou morrer outra vez? É isso? Quando é que isto vai acabar? Aquela Niil adulta limitou-se a sorrir. Um lindo e bondoso sorriso. Está bem. Mas quando esta bizarra aventura terminar quero um belo osso como recompensa! Ouviste bem? Cerrei os olhos e puxei o gatilho.

Le Second Impact

A luz vermelha continuou a avançar resolutamente pelo meu corpo. A morte parecia inevitável. As pernas e os braços já estavam incapacitados. O estômago ardia como se eu tivesse ingerido um punhado de brasas. O meu único conforto consistia em pensar que tudo não passava de um produto da imaginação. Enquanto me perdia sei lá em que dimensão Niil observava-me. Era o meu público. A sinistra testemunha do meu fim.

"Estás a gostar do espetáculo?"

“Estou," respondeu Niil. "Nunca vi ninguém morrer.”

“Vai à merda."

“Oh, Joel, por favor, não estragues o momento com palavras rudes.”

Eu desejava responder-lhe de forma ainda mais rude mas aquela lava sobrenatural acabou por me cobrir a boca.

“Pronto. Agora está caladinho."
 

Merde! Eu não podia falar mas tinha de ouvi-la até ao fim. 

"Um,” começou Niil. "Dó."

Por fim os meus olhos foram devorados e fui lançado na escuridão.

"Li."

“Tá. Cara de amendoá. Pronto, Joel, já vi sofrimento que chegue. Aqui vai uma dica. Se encontrares alguém que dispare a arma por ti talvez escapes.”

A negritude deu lugar a uma brancura irreal. Porém em vez de perder a consciência continuei acordado. O fim da vida não deveria provocar a suspensão total dos sentidos? A não ser que... Niil continuava a sussurrar-me do outro lado.

“Procura dentro de ti alguém capaz de disparar a arma.”

Senti frio. À minha frente tinha uma cabana. Encontrava-me na orla de um pinhal. Numa clareira coberta de neve. Afinal o paraíso não era tropical mas siberiano. A baixa temperatura impeliu-me na direção da cabana. Ao dar o primeiro passo ouvi uma voz feminina vinda detrás.

“Não podes.”


Não me virei. Havia hostilidade naquela voz. Pressenti que caso me virasse para ver quem falava nunca mais voltaria a ver a Mariana. Porque é que, do leque de pessoas à minha disposição, eu pensei na minha psicóloga? Ela estava longe. Demasiado longe. Mas a cabana estava ao meu alcance. Dei um novo passo.

“Aquela casa pertence-me. Não podes lá entrar,” avisou a voz.

“Então acaba já com isto.”

“Avec plaisir.”

Senti um projétil a atravessar-me violentamente o peito. Caí de seguida na terra gelada e perdi os sentidos.