Quarto Impacto (2/4)



Estava na altura de voltar a casa. Acender a lareira, comer os restos do almoço e fumar uma cachimbada junto ao lume. As labaredas são mesmo um encanto. Se olharmos de mente aberta para o fogo, e para as sombras que ele evoca, podemos assistir a um espetáculo digno de ser apresentado nas maiores salas das principais metrópoles. Cheio de drama e mistério. É tudo uma questão de saber usar a cabeça. Já para usufruir do cachimbo, além da cabeça é preciso usar as mãos. Foi feito por mim e tratei de lhe esculpir, na chaminé, uma coruja. Ficou um bocado tosca mas, em todo o caso, adorável. Confesso que não fiquei satisfeito no momento da talhada final e que cheguei a pensar em lixar a madeira até a superfície ficar lisa, no entanto, ao olhar para a minha criação, como se se tratasse, de facto, de uma coruja verdadeira, acabei por lhe ganhar carinho. De maneira que lhe arranjei um espaço digno na minha vida: a companhia dos meus serões à lareira. No fim de contas, superfícies lisas todo o homem é capaz de as fazer, e ficam todas idênticas, mas quanto à criação de corujas a história é outra. Excluindo este meu arrufo expressionista o cachimbo era normal e fumava bem. Somente a qualidade do fabrico não correspondia à do tabaco, que consistia em míseros palitos de pinheiro. O sabor não era nada de especial. Mas também não me podia queixar. Não havia melhor. E o fumo sempre me ajudava a superar as longas noites de inverno.

Ora, hoje, ao acordar, era assim que pensava finalizar mais um dia no paraíso. Calma e relaxadamente, perdido no fumo e no fogo. Mas agora com o sol a pôr-se, pressentia que não era isso que me esperava.

Algo de estranho, ao meu universo, iria manifestar-se.

Estava nervoso. Tal e qual um animal surpreendido por um predador, que habilmente soube manter-se invisível durante a sua aproximação. Se estivesse para ser caçado, de acordo com o guião, agora teria que correr pela minha vida. Mas obviamente que não era nada disso que ia acontecer. Eu era o predador alpha da região. Também não notava nada de errado em meu redor. O rio corria. Costumeiro. O céu... O céu talvez estivesse mais vermelho do que habitual. Um pouco mais pronunciado. Agora que o observava com olhos de ver. Era de um vermelho macabro. Catastrófico. De uma violência sobrehumana. Um céu de sangue. Caramba! Esta associação de ideias não é nada bonita. Teria acontecido algo, na minha existência passada, onde o vermelho tivesse tido um papel negativo? Quem sabe. Pensaria nisso depois. Tinha, primeiro, que recuperar a calma.

Contei até dez, devagar, para ver se me abstraía, quer da realidade, quer do espírito. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito... Em vão. Continuei com os nervos em franja. Portanto não era o Ego a reagir emocionalmente a fenómenos íntimos misteriosos. A estranheza, que sentia, provinha do mundo material. O mundo estava a mudar. E não era só o céu.

Continua...