Quarto Impacto (3.1/4)

O
espetáculo celeste continuava o seu programa indiferente à angústia telúrica da minha alma. O sol lançava a sua luz vermelha sobre o pico do Leão Voador e o rio corria que nem serpente negra sibilando alegremente o caos. Agora o que é que se faz quando a terra perde uma das suas facetas, a ordem, antes da última luz do dia se extinguir? Tal como uma pessoa que nunca foi ensinada a agir em caso de catástrofe, das duas uma, ou entra-se em pânico ou aguenta-se estoicamente. Em ambos o casos a natureza humana, quando posta em xeque, é incapaz de agir em função da sua salvação terrena. Assim se percebe a utilidade das nossas inúmeras mil e uma noites. É que idealmente gostaríamos de ser estúpidos como as ovelhas e com isso garantirmos o nosso lugar num mundo melhor. E menos dado a repentinas entropias. Em suma, as histórias da carochinha são uma perfeita inutilidade. É preferível continuarmos a ter os nossos simulacros de terramotos para sabermos o que fazer e com isso, efetivamente, nos safarmos do que esperar por uma refeição grátis.

Continua...

Quarto Impacto (3/4)

O ar tinha ficado mais pesado. A dificuldade em respirar acusava isso. Da floresta, o som harmonioso do esvoaçar das folhas, entrecortado por estalidos, tinha sido substituído por puro silêncio. O barulhar das árvores tinha cessado lançando toda a região numa tranquilidade lunar onde nem o chilrear de uma qualquer ave cantante se ouvia. Isto não podia ser bom. Mas visto que eu não podia fazer nada para impedir a ocorrência de fenómenos sobrenaturais, o melhor mesmo era recolher-me ao ninho e esperar. Portanto voltaria para a cabana como planeado.

Dei uma passada em frente. E mais outra e ainda mais outra. Três passadas foram dadas. Quatro, cinco, seis, sete, mas, coisa estranha, as botas sobre a neve não estavam a emitir qualquer ruído. Voltei a dar um passo... Novamente silêncio. Era só o que me faltava. Pressionei a sola da bota com mais força. A neve teria de ceder e produzir algum som. Era essa a lei. Mas nada. Olhei atentamente para o chão, para verificar se de facto pisava neve. E claro que pisava. Só que o som... Pufff! Que diabo, o que se passará? Levantei o olhar mais uma vez na direção da floresta e confirmei que as árvores continuavam no mesmo sítio. Não se tinham mexido nem se reorganizado misteriosamente. O céu continuava nas alturas tal como Astérix desejaria que ficasse até ao fim dos tempos. De maneira que estava tudo no lugar exceto o som. Menos mal. No fim de contas, num mundo sem som, a única garantia que se possui é a imaginação. E é bom que a minha ideia da realidade esteja correta. Já o rio, por sua vez, parecia indiferente a este desconcerto. Aparentemente continuava a sussurrar a mesma canção de sempre. Ou será que? Deixa-me cá ouvi-lo com atenção.

Na verdade algo corria juntamente com a água. Mas não na sua direção. Em todas as direções! Algo semelhante à estática de um rádio mal sintonizado. Uma faixa de ruído composta por beeps e glitches que volitavam por todo o lado. Sons desordenados, caóticos, mas claramente individualizados. Eram os sons da Terra que se tinham separado da sua origem, e sem leis físicas que os ordenassem eles transformavam-se livremente.

Joel tinha tomado como certo que o modem que descodificava os sinais deste mundo era o Homem e exclusivamente ele. Pois bem, ele irá descobrir que essa história está mal contada. Ou, pelo menos, mesmo que ele não venha a descobrir absolutamente nada, esperemos que ele comece a pensar no assunto.

Afinal quem é que vos meteu na cabeça que só o Homem é que pode manipular as leis da natureza em seu proveito?

Continua...