Eu Possuo O Conhecimento do Mundo - Parte 8

“Você está aqui para pensar em tudo,” informou-me o meu orientador no primeiro dia de trabalho.

Chamava-se Nuno e era, por assim dizer, o meu chefe. Era um ano mais novo que eu e era um gajo porreiro. Sempre alegre. Até nos dias maus, em que era ainda mais alegre. Mas completamente avesso às modas. Costumava vestir umas calças de ganga largueironas de um azul que era, como defini-lo, era desagradável. Não era escuro nem claro. Não era feio nem bonito. O certo é que não havia meio de eu gostar daquela cor. E como pude averiguar o modelo que vestia era o mesmo durante meses a fio. Portanto estamos a falar de um roupeiro repleto de calças do mesmo modelo. Já a cor das suas camisas oscilava entre o amarelo-claro e o amarelo-sujo. O cabelo era mantido curto e penteado sempre com o risco do lado esquerdo. A barba era aparada de semana a semana. E calçava umas sapatilhas castanhas todo-o-terreno. Este conjunto, nunca alterado, era completado por um casaco, estilo aviador, com óculos a condizer quer fizesse chuva ou calor. Com o tempo ele tornara-se meu amigo e era frequente irmos jantar fora e beber uns copos. Ele parecia ter gostado de mim. Apesar de não partilharmos qualquer interesse em comum. Gostava de mim possivelmente por lhe dar trela. As nossas conversas eram mais os monólogos dele do que outra coisa. Eu apenas contribuía com alguma retórica.
 

“O tudo é mesmo tudo?”

“Sim. Pense em tudo. Desastres naturais, tragédias humanas, crimes passionais, explosões nucleares, revoluções, golpes de estado. Qualquer coisa serve. Você deve estar bem informado porque estudou História.”

“Sim. Mas como funcionário público eu não devia pensar em prol da sociedade?”

“Nada disso. Se você quiser destruir a sociedade vá em frente. Sabe, o indivíduo oscila entre o negativo e o positivo e não os diferencia. Juízos de valor só o coletivo os faz. E mal, diga-se. Portanto ao darmos mais peso a um lado do que ao outro a nossa conceção da realidade estará à partida errada. E nós neste departamento queremos a realidade e nada mais que a realidade. Dentro dos nossos limites. Como é óbvio.”

“Ok. E se porventura eu me achar a bater sempre na mesma tecla? Acontece, quando as ideias são muito disparatadas.”

“Esteja tranquilo. Quanto mais neurótico for melhor. Claro que isso não será bom para si. Mas não se preocupe, Joel, nós cobrimos as despesas do tratamento psicológico e psiquiátrico. Sabemos que o trabalho da mente pode dar, não queria dizer maus resultados, mas resultados inesperados.”

“Há casos de loucura nesta profissão?”

“Tantos quanto numa caixa de supermercado.”

Digamos que na altura pensei que a comparação com uma caixa de supermercado era despropositada. Vim a saber que era somente uma tirada humorística da sua autoria. Não podia adivinhar que ele tinha sonhado em ser humorista. Mas é melhor esquecer os acidentes de trabalho.

O apartamento possuía mais duas divisões que poderiam ser usadas para outros consultórios. Mas estavam desocupadas. Parecia que esta psicóloga não gostava de competição. Percorri o corredor que sempre achei longo demais para o tamanho do prédio. Sabia perfeitamente que era tudo obra da minha imaginação mas, ainda assim, eu continuava convicto que a última porta dava acesso a uma divisão flutuante fora dos limites do apartamento. Por outro lado a iluminação dava-me a ideia de estar a caminhar num corredor de hotel. Era só colocar números nas portas e o aspeto seria de um sem pôr nem tirar. Mas nem números nem identificação do consultório de Mariana Isabel do Rosário. O seu consultório estava instalado no nono andar direito e nem havia uma pequena indicação disso na entrada do prédio. Simplesmente ninguém adivinharia que aqui existia um consultório de psicologia.

“Olá, o meu nome é Joel e queria saber se podia marcar uma consulta?”

A psicóloga tinha claramente atendido mas mantinha-se em silêncio.

“Estou? Está aí alguém? Estou a ligar para o consultório da psicóloga Mariana Isabel do Rosário?”

Se calhar devia ter-me dirigido a ela como doutora. É mais recorrente.

“Sim. É do consultório de psicologia de Mariana Isabel do Rosário.”

Do outro lado do auscultador chegava-me agora, enrolado na voz da psicóloga, um ruído de mastigação. Mas a mulher está a comer?

Eu Possuo O Conhecimento Do Mundo - Parte 7

Com o tempo a negação dissipou-se e as paredes correspondentes ao consultório tornaram-se as únicas fronteiras pelas quais de facto ansiava. Fazendo com que a restante realidade se afundasse no nevoeiro do quotidiano para nunca mais voltar. Afinal a construção que me mantinha vivo não tinha uns alicerces assim tão sólidos. Quase nada me prendia aos demais habitantes deste planeta. O meu trabalho deixara de importar, os meus laços familiares permaneciam pouco familiares, a minha firme direção do condomínio fora-se ao ar, e digamos que apenas o compromisso que tinha com o banco me ligava à realidade quotidiana. Pois ainda precisava do teto proporcionado pelo meu modesto apartamento, onde mantinha uma espécie de tesouro literário. Livros, livros e mais livros. Empilhados em estantes por toda a casa. Centenas de exemplares que foram lidos afincadamente, da primeira à última página, com um fervor que hoje me parece despropositado. Para quê? Porquê? Por vício? Por erudição? Por fé? Ou simples aborrecimento? Não sei. Tiveram a sua utilidade. Já não me servem. A fonte secara. Deixei de ler quando? Creio que passado quatro anos depois de me mudar para este prédio. Possivelmente na mesma altura em que a psicóloga montara o consultório. Mas é impossível precisar o momento exato em que abandonei as leituras. Foi assim um ar que me deu. Contudo continuei a comprar livros. Só pelo prazer de ver as estantes a encher. Existem pessoas que enchem o armário de sapatos, outras a garagem de carros, eu vou enchendo as estantes de livros. Somos bichos recoletores, não tenham dúvidas. A minha psicóloga era uma recoletora de sapatos, pois só assim se explicava que em todas as sessões trouxesse um par novo. Todos eles de salto alto e de cores claras. Se era azul era bebé, se era verde era alface, se cinzento era claro, se amarelo a mesma coisa, etc. e por aí adiante. As cores iam rodando juntamente com o modelo que variava ligeiramente mas sem nunca alterar a essência do sapato. Bastante diferente de mim que ficava satisfeito com umas Puma Suede Classic azuis durante o ano inteiro. As mudanças no seu calçado eram a única coisa que me permitia criar uma cronologia da minha evolução psicológica, isto porque quanto à restante aparência esta era meticulosamente igual em todas as sessões. Ela usava um vestido azul-marinho, pouco decotado, cortado pelos ombros e pelos joelhos, e vestia as pernas com collants pretos translúcidos. Já o cabelo era apanhado atrás deixando as orelhas sem brincos à mostra. O conjunto terminava com uma fina pulseira prateada no pulso esquerdo. Bonita? Não. Não é o termo. Atrevo-me a dizer que ela era poética. Correspondia a uma certa imagem feminina que eu construíra inconscientemente. E isso digamos que mexia com o meu íntimo porque eu não conseguia precisar de onde tinha surgido este ideal feminino. Tenho a certeza de nunca ter visto mulher semelhante na realidade ou em sonhos. O que significava que eu era um joguete de emoções das quais desconhecia o propósito. Que tinham planos para mim, escondidos de mim, que seriam revelados, que nem caixa negra de um avião, quando ocorresse algum desastre. Caso tenha a sorte de passar incólume pela vida escusado será dizer que nunca os irei descobrir. Porém eu não devia pensar em desastres.

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Eu Possuo O Conhecimento Do Mundo - Parte 6

Da revolta à desilusão foi um passo e o resto da universidade foi um descalabro. Mas no fim de contas as coisas até correram pelo melhor. O meu pai tinha contactos na câmara municipal, de maneira, que foi só eu voltar a casa para no espaço de duas semanas me encontrar a trabalhar no recém-criado Departamento de Sincronização. Os requisitos pedidos eram que os candidatos tivessem menos de trinta anos, procurassem o primeiro emprego e fossem formados por uma universidade pública. O último requisito era eliminatório. Estavam claramente à minha procura. As razões por detrás de tal exigência prendiam-se com os interesses económicos do estado, com alta especialização do trabalho, com estatísticas de empregabilidade dos institutos públicos, etc. E várias patranhas do mesmo género. Público versus privado. A questão social de sempre. E o privado, neste caso, saia a perder porque os sincronizadores atuavam no melhor estilo Robin Hood. Assim o diziam. Eu não tinha outro remédio senão acreditar porque passava o dia sentado com um capacete ligado a um computador. Bastava-me estar ali sentado e o cérebro fazia tudo. Porreiro. Portanto achei-me com um trabalho fácil que me proporcionaria uma vida igualmente fácil. Trinta e cinco horas semanais, fins de semana e férias garantidas, os devidos seguros, uma atividade que não exigia esforços físicos, em suma, um trabalho perfeito. Rifas destas nem na farinha amparo. Acho que até foi essa constatação que me levou a requerer os serviços de um psicólogo. Quer dizer, eu não acredito em trabalhos perfeitos. Daqueles em que ninguém suja as mãos e que é possível esquecê-los depois de várias horas no duro. Se fizermos trabalhos de burro ficaremos burros. Eu sei demasiado para saber que trabalhos perfeitos são apenas teoricamente possíveis e que nada na realidade existe de parecido. Portanto havia tramóia. E era eu que me andava a enganar. Com toda a certeza. Porque estava a participar no jogo e a curtir a cena. Mas logo logo as contradições começaram a surgir. E eu sem poder abrir a boca. Tinha de falar com alguém fora dos círculos habituais de convívio. E não podia fazê-lo com qualquer pessoa, não que estivesse em posse de um segredo de estado, mas porque ninguém que tivesse uma profissão normal, como por exemplo um padeiro, poderia entender o que eu estava a passar. Não podia falar com alguém muito quadrado. Esse tipo de pessoas não tem poder de encaixe. É quadrado e ponto final. Não aceitam outra forma. Eu tinha de me dirigir a alguém capaz de lidar com as mais variadas formas, ou seja, uma pessoa que não exigisse perfeição por ser ela própria imperfeita. Intimamente eu não queria ser julgado como uma ovelha negra. Não queria ser reeducado. Queria apenas compreensão.

Empurrei a porta do nono direito, que estava apenas encostada. A pressão da mola que a mantinha fechada obrigava-me a aplicar alguma força no puxador. Este combate secreto fazia a mola ressoar impercetivelmente enquanto cedia para me deixar entrar. Para mim era um discreto sinal de boas-vindas. Que indicava que eu podia baixar as minhas defesas. Ao entrar no apartamento senti de novo a insólita impressão de que as paredes tinham sido pintadas recentemente. Não sabia explicar porquê, mas era como se estivesse a entrar numa casa ainda por habitar. Aqui o ar era sempre fresco como se fosse importado diariamente de alguma montanha intocada pela civilização para este cubículo de modernidade. Além da pureza do ar o apartamento abrigava um silêncio total. Nenhum som penetrava estas paredes. Não se ouvia nem uma buzina de automóvel, nem o chilrear de um pássaro, nem sequer a filha dos vizinhos de baixo que adorava ouvir música como se estivesse num festival. E a esta hora ela já devia ter voltado da escola o que significava que o concerto começara. Confesso que gosto da música que a garota ouve. Parece post-punk. E é tão raro ouvir músicas nesse registo hoje em dia. Virou tudo New Order. Infelizmente ainda não tive a oportunidade de lhe perguntar que bandas ouvia. É que ela tinha dezasseis anos e se eu lhe falasse com demasiado interesse tinha a certeza que iriam surgir mal-entendidos entre todas as partes envolvidas. Provavelmente não aconteceria nada de especial se eu fosse casado e com filhos. Mas como não é o caso era melhor tomar algumas precauções para não chocar de frente contra o preconceito. As músicas que ela ouvia também não passavam nos canais mainstream por isso para as encontrar seria um trinta e um. Talvez quando ela fizer dezoito anos. Mas não pensemos mais nisto pois a música não chega aqui. O silêncio é completo. Imagino que a minha psicóloga tenha investido num sistema de isolamento de topo, daqueles que se costumam encontrar em estúdios de gravação de som, porque apesar da construção recente o isolamento sonoro do edifício não era espetacular.
 

Entretanto a porta fechara-se emitindo um ruído abafado ao tocar nos batentes de borracha. Até à porta do consultório separava-me um corredor iluminado a meia luz por pequenos projetores embutidos no teto. A única divisão aberta era a sala de espera. Esta sala encontrava-se mobilada com um grande sofá preto e uma televisão LCD equipada com canais por cabo. Na parede estavam pendurados alguns quadros de paisagens. Uma marítima, uma campestre, uma urbana e uma de montanha. Compunham um jogo cromático de azul, verde, vermelho e branco. A um canto havia uma mesa com uma máquina de café expresso e uma pequena vitrine com miniaturas de bolos de pastelaria. Muito atenciosa esta psicóloga. A televisão estava sempre a funcionar sem som. Penso até que nem deve ter colunas pois já tentara levantar o volume sem sucesso. O silêncio era obviamente estudado para proporcionar algum tipo de relaxamento. Eu pelo menos sentia-lhe o efeito. Caso a psicóloga abandone este apartamento não perderei tempo a mudar-me para cá. Ela não tinha nenhuma secretária ao seu serviço de modo que os clientes é que se geriam. Primeiro tu, depois eu. Não estava ninguém na sala de espera o que significava que ou estava alguém a ser consultado ou que era eu o único cliente. E secretamente desejava ser o único cliente. Secretamente desejava ser a única razão que fazia Mariana Isabel do Rosário vir a este prédio. Queria que na sua agenda constasse apenas o meu nome Joel Ilitch. Em todas as horas, em todos os dias. O meu nome obsessivamente escrito com a sua mão artisticamente desenhada para anotar os meus devaneios. Sei que ela tem um ficheiro dedicado à minha pessoa. Sei que por lá se encontra o meu ego despido. Será que sou de bom material? De que pedra sou feito? Posso ser esculpido, polido até resplandecer, aperfeiçoado de maneira a ser um homem melhor? Até ser uma escultura de Rodin? Ela terá a sua opinião formada mas sempre que sou demasiado direto ela oculta a sua voz, a sua verdadeira voz, atrás de uma platitude qualquer que eu poderia encontrar num livro de iniciação à psicologia. Basicamente falávamos sobre nós sem contudo tocarmos no assunto. Como se tivessemos consciência de que um movimento demasiado brusco lançaria por terra os nossos esforços, que nem uma pirâmide de cartas. Era verdadeiramente mágico falar com ela. Mariana, a mágica. E aqui estou eu, prestes a entrar novamente nesse reino onde a existência é a minha inexistência, ou seja, todo o meu ser que permanece escondido de mim próprio.
 

“Costuma lembrar-se dos seus sonhos,” perguntara ela na segunda ou terceira consulta.
 

“Não.”
 

“É dado a longas fantasias enquanto acordado?”
 

“Nem por isso. Mas por vezes imagino-me nas situações mais improváveis.”
 

“E por acaso alguma vez se viu nessas situações improváveis?”
 

“Para ser sincero, não. É que eu já acho a minha vida bastante improvável. Sou incapaz de imaginar-me a mim próprio na minha vida.”
 

Constatei que havia demasiado Eu em tudo o que dizia. Aqui ela parou o interrogatório para fazer algumas anotações.
 

“Alguma vez se sentiu perdido?”
 

“Não.”
 

“Nunca esteve em sítios desconhecidos, sem alguém a quem pudesse pedir ajuda?”
 

“Sim. Algumas vezes.”
 

“E nessas situações não entrou em pânico?”
 

“Não. Sinceramente não me lembro de alguma vez ter sentido pânico.”
 

Ela voltou a fazer uma anotação.
 

“Acha isso normal?”
 

“Não sei. Mas espero que você me diga.”
 

Ela ficou em silêncio. Eu presumi que o interrogatório tinha acabado.
 

“Imagino que pensa que este consultório é o sítio mais improvável onde esteve até hoje.”
 

“Sim, de facto, é nisso que penso.”
 

“Isso significa que você também tem dificuldades em aceitar a minha existência.”
 

Bingo. Nas primeiras semanas, todas as forças do meu ser estavam concentradas em negar a existência da minha psicóloga.

Eu Possuo O Conhecimento Do Mundo - Parte 5

Se a Espera era uma lógica que me satisfazia então eu de facto esperei até não poder mais. Esperei até que 2+2 se tornasse efetivamente 5. E só depois de constatar que dava 5 de todas as maneiras é que me dirigi, e perdoem-me a expressão, a um médico da carola. Que, digamos, não é médico nenhum. Mas não havia outra alternativa. Era a única. Precisava de ajuda especializada. Precisava de uma brigada de cavalaria mecanizada para deitar por baixo as paredes que construíra e onde inadvertidamente me enclausurara. Precisava que os tanques entrassem pela capital em direção ao parlamento e acabassem com o palavreado infindável.
 

“Meu comandante, general, hellraiser, whatever. As unidades estão a postos.”
 

“Ótimo, alferes Joel. Então, dê a ordem de disparo. Rebentemos com isto.”
 

“Não devíamos tentar negociar, meu napoleão?”
 

“Nada disso, garfo Joel. Desta vez nada de abébias.”
 

Isto só para dar uma ideia do que eu realmente precisava. Estava num ponto em que já nem a diplomacia ou a matemática me podiam ajudar a vencer o mítico 2+2=5. Que 2+2=5 seria até ao fim dos meus dias se eu não fizesse nada para combater isso. Ora cá está o nono andar. O momento por que esperei toda a semana. O nono andar, que se trata do último, é composto por um corredor com três portas. Duas laterais para apartamentos e uma central que dá acesso a compartimentos para arrumações. O consultório da psicóloga está instalado no nono direito enquanto que o nono esquerdo se encontra desocupado. Pendurada na porta do esquerdo pode-se ver uma folha A4 branca indicando que o apartamento estava para alugar, com um número de telefone. O anúncio fora escrito à mão, um ato invulgar num mundo totalmente computorizado. E com uma caligrafia tão intrincada que mal dava para discernir a mensagem no meio daqueles arabescos. Era difícil acreditar que a pessoa que escrevera aquilo pertencia ao século vinte e um. Um verdadeiro achado de outros tempos. A minha avó, se fosse viva, escreveria daquela maneira. Isto é, quando o rei fazia anos e com a pompa e a circunstância que isso implicava. É que a escrita para esta mulher era para ser usada só em ocasiões especiais, como o envio de postais de boas festas ou para a anotação de receitas. Jamais em toda a sua vida escrevera algo que fosse somente para si. Não foram encontrados nem poemas, nem apontamentos espirituosos, nem uma cartinha de amor sequer nas suas gavetas aquando da sua morte. Portanto nem sinal da sua vida interior. Ou seja, a minha avó era como a lua terrestre, um satélite morto. Mas a melhor imagem para a descrever seria a de um arranjo floral fúnebre, bonito mas protocolar e artificial. Provavelmente tornara-se assim por causa da morte do meu avô. Um incidente deveras lamentável: o raio do homem enforcara-se poucos meses depois da minha mãe nascer, ainda era ela criança de colo, com um cinto na casa-de-banho. Assim como quem não quer a coisa. O que terá ele visto no seu futuro para cometer um ato tão drástico? É que não se tratou de um suicídio irresponsável. O meu avô tratara de todos os assuntos pendentes que tinha e ainda garantira meios para a família manter o nível social. Portanto, um trabalho bem feito. Para a minha avó foi coisa para lhe desnortear a cabeça, é certo, mas para mim, uma criança feliz, essa tristeza que emanava constantemente dela era insuportável. Daí desde muito cedo ter desenvolvido um ódio por ela. Creio que ainda hoje detesto a minha avó por ter manchado a minha infância com o seu cheiro a morte e com os seus mon chéri. Blergh! Enfim, são coisas de miúdo que perdurarão toda a vida, e como eu não tenho falta de memória será mesmo toda a vida. Agora aquele anúncio de aluguer tratava-se de um notável exemplo de caligrafia, se bem que anacrónico, para um anúncio desta natureza. Seria o proprietário do apartamento um calígrafo? Ou então apenas alguém sem jeito para o negócio, pois ainda não conseguira rentabilizar o apartamento. Dizem que a crise financeira afetou, em especial, o mercado imobiliário. Presumo então que este proprietário seja uma dessas vítimas. Felizmente eu escapei a essa tragédia. Mudei-me para cá dois ou três anos depois do edifício ter sido construído, e comprei o meu apartamento com dinheiro emprestado pelo banco. Agora tenho prestações para pagar até aos cinquenta anos. Que absurdo de tempo! E ainda só tenho trinta e oito. Mais dez anos de obrigações bancárias. Afinal quem é que me governa? Os bancos ou o estado? Enfim. Claro que desde o começo da crise um pobre assalariado está impedido de fazer este tipo de aventuras. Espero sinceramente que o Departamento de Sincronização da Câmara Municipal não encerre as portas. É que com este tsunami de cortes nunca se sabe onde vai cair a tesoura. Em princípio isso não acontecerá, pois a profissão de sincronizador é relativamente nova e o meu chefe garantiu-me que é emprego para a vida. Um sincronizador é... Bom, toda a gente já ouviu falar de detetives privados, agentes secretos, assassinos profissionais e hipnotizadores, não é verdade? Porém a maioria irá morrer sem nunca se deparar com um, ou se tal acontecer em princípio não terá conhecimento disso. Ora bem, um sincronizador pertence a esta categoria de profissões misteriosas. E digamos que é tão misteriosa, ou melhor, estranha segundo os padrões de normalidade que eu precisaria de duas vidas para explicar o que faço. O certo é que os sincronizadores desempenham uma função tão importante que já nenhuma instituição pública passa sem eles. A sociedade dá cada volta. Não se pode contar com ela para nada. E eu que tirei um curso universitário de História. Para quê? Pretendia dar aulas ao secundário. Uma ideia que, não sei como, me punha bastante feliz. Dar aulas. Ensinar. Semear sabedoria na cabeça de adolescentes ávidos de conhecimento. Sem dúvida uma grande lengalenga que contava a mim próprio. Desde quando um adolescente é um ser ávido de conhecimento? Idealmente seria assim mas a realidade está cá para nos desmentir. Eu, na altura, queria, muito sinceramente, era que tudo fosse para o car****! Tudo. Então onde é que fica o conhecimento? No car****. Como se vê eu era um rapazola adorável. Com efeito os anos de universidade são bons é para limpar o rabinho e para providenciar lavagem cerebral às camadas superiores da população. Quanto àquele que por descuido ou génio vá para parar ao ensino superior vindo de uma classe inferior acaba por se transformar num revoltado. Foi o que me aconteceu, mas como foi por pouco tempo, o resultado consistiu em passar de revoltado a falhado.

Eu Possuo O Conhecimento Do Mundo - Parte 4

As minhas relações com a psicóloga Mariana Isabel do Rosário eram do género chegava à hora marcada e lá ia eu à minha vida e ela ia à sua. Por vezes descia comigo mas normalmente ficava no consultório. O meu regresso a casa, que consistia em apanhar o elevador para descer até ao meu apartamento, era passado perdido em pensamentos. Viajando até ao fundo da minha mente, não necessariamente fundo, pois o fluxo de consciência nem sempre é a descer. Neste momento ascendo. Pois as descidas são infinitamente mais serenas. Como se se tratassem de partidas de tétris jogadas pelo melhor jogador. As peças soltas encaixam-se de forma graciosa e desaparecem ao som de uns acordes de Kalinka. Porém as sessões com a psicóloga não eram estes exemplos de perfeição, pelo contrário, eram acima de tudo, inconclusivas. Pelo preço que ficara acordado as respostas às minhas perguntas poderiam ser dadas de forma objetiva. Mas não. As respostas são dadas de forma subliminar e precisamente quando elas já não me são úteis. Semelhante a uma cena entre uma mãe impaciente e um filho curioso.

“Porque é que o céu é azul?”

“Não sei. Deixa-me ver a telenovela.”

Será que a telenovela iria esclarecer-me a dúvida? Era este o resultado que me esperava sempre que tentava arrancar algo de concreto da minha psicóloga. Tão grande foi o efeito desta técnica sobre mim que deixei de procurar respostas de todo. Nem nas consultas nem na vida em geral. Os problemas que se resolvam sozinhos. Uma máxima que surgiu naturalmente ao fim de algum tempo a matutar numa teoria que me acalmasse os nervos, pois estava fora de questão continuar num limbo existencial. E não era para isso que consultava uma psicóloga. Constatei que não dando atenção aos problemas eles magicamente se desvaneciam. Como se a minha dedicação aos contratempos, que até que me provem o contrário surgirão sempre porque sim e não por culpa de fulano, os fortificasse e alimentasse prolongando-os assim indefinidamente no espaço e no tempo, tornando-se eventualmente eles próprios o espaço, o tempo e, às vezes, o ser. Trocando isto por miúdos eu era a causa e simultaneamente sofria as consequências, ou seja, estava metido num imbróglio de todo o tamanho visto que a única causa que defendia era eu próprio. Logo concluí, se tinha problemas com a minha existência, o epicentro do caos seria eu. Então, cavalgando na crista desta epifania, optei por passar a assistir de longe ao desenrolar do espetáculo em vez de estar sempre pronto a aplaudir. Mormente no momento errado. Fi-lo supondo que assim as contradições que me tiravam o sono se dissipariam. E estava certo. O peso do mundo subitamente começou a atenuar-se. Até a minha respiração se tornou mais fácil. Como se tivesse retirado a tampa do ralo da banheira para que a água, que me submergia por completo, pudesse correr para o seu devido lugar. Isto é, para longe de mim. Sinceramente cheguei a pensar que, com este raciocínio, me estava a meter numa grande trampa metafísica mas era impossível resistir às evidências. O sol brilhava finalmente depois de dias, e dias, de tempestade. E se porventura voltava a cair nesses nós cegos da mente estes já não se apresentavam como ossos duros de roer mas apenas como memórias. Só espero que estas recém-conquistadas asas evitem um novo mergulho nesse lago dantesco. É que o reflexo das estrelas, na sua superfície, durante as longas noites de inverno, é por vezes tão tentador... Joel, não vás por aí. Ok. Por fim tive que dar o braço a torcer e admitir que o que não se vê segue por caminhos próprios, e secretos, e não precisa da nossa ajuda para nada. Creio que se nos deixássemos de ativismos de toda a espécie o mundo funcionaria melhor. É que não vale mesmo a pena estarmos sempre a pensar nele. Deixai-o rodar sobre o seu eixo como, e quando, lhe aprouver, pois é bem possível que este mundo se esteja a cagar para nós. Portanto, relax. E além disso os destinos da humanidade não mudam se em vez de comermos queques ao pequeno-almoço passarmos a comer bolos de arroz. Há escolhas que fazemos que não mudam absolutamente nada. Só num romance muito mauzinho é que um queque muda a vida de uma pessoa. Coisa que não invalidará o seu retumbante sucesso como best-seller, porque, secretamente, a maioria das pessoas pensa que pode mudar porque sim. Apenas com a força da vontade. Yes, we can, como se precisássemos de uma sequela de Triumph des Willens. Continuemos a contar histórias da carochinha às multidões e veremos o que acontece. Convenhamos que é bastante motivante pensar se nós formos muito bons como seres humanos eventualmente coisas muito boas nos irão acontecer. Mas vá-se ver o destino da zebra mais bem comportada da savana africana para descobrirmos que a sua virtude irá levá-la a acabar a vida na goela de uma leoa ou na mandíbula de um crocodilo. Concluí assim que a Vontade não é solução para tudo e que a Espera tem uma lógica mais consistente, e até ver mais satisfatória, para as vicissitudes do animal insatisfeito que é o Homem.