Com o tempo a negação dissipou-se e as paredes correspondentes ao consultório tornaram-se as únicas fronteiras pelas quais de facto ansiava. Fazendo com que a restante realidade se afundasse no nevoeiro do quotidiano para nunca mais voltar. Afinal a construção que me mantinha vivo não tinha uns alicerces assim tão sólidos. Quase nada me prendia aos demais habitantes deste planeta. O meu trabalho deixara de importar, os meus laços familiares permaneciam pouco familiares, a minha firme direção do condomínio fora-se ao ar, e digamos que apenas o compromisso que tinha com o banco me ligava à realidade quotidiana. Pois ainda precisava do teto proporcionado pelo meu modesto apartamento, onde mantinha uma espécie de tesouro literário. Livros, livros e mais livros. Empilhados em estantes por toda a casa. Centenas de exemplares que foram lidos afincadamente, da primeira à última página, com um fervor que hoje me parece despropositado. Para quê? Porquê? Por vício? Por erudição? Por fé? Ou simples aborrecimento? Não sei. Tiveram a sua utilidade. Já não me servem. A fonte secara. Deixei de ler quando? Creio que passado quatro anos depois de me mudar para este prédio. Possivelmente na mesma altura em que a psicóloga montara o consultório. Mas é impossível precisar o momento exato em que abandonei as leituras. Foi assim um ar que me deu. Contudo continuei a comprar livros. Só pelo prazer de ver as estantes a encher. Existem pessoas que enchem o armário de sapatos, outras a garagem de carros, eu vou enchendo as estantes de livros. Somos bichos recoletores, não tenham dúvidas. A minha psicóloga era uma recoletora de sapatos, pois só assim se explicava que em todas as sessões trouxesse um par novo. Todos eles de salto alto e de cores claras. Se era azul era bebé, se era verde era alface, se cinzento era claro, se amarelo a mesma coisa, etc. e por aí adiante. As cores iam rodando juntamente com o modelo que variava ligeiramente mas sem nunca alterar a essência do sapato. Bastante diferente de mim que ficava satisfeito com umas Puma Suede Classic azuis durante o ano inteiro. As mudanças no seu calçado eram a única coisa que me permitia criar uma cronologia da minha evolução psicológica, isto porque quanto à restante aparência esta era meticulosamente igual em todas as sessões. Ela usava um vestido azul-marinho, pouco decotado, cortado pelos ombros e pelos joelhos, e vestia as pernas com collants pretos translúcidos. Já o cabelo era apanhado atrás deixando as orelhas sem brincos à mostra. O conjunto terminava com uma fina pulseira prateada no pulso esquerdo. Bonita? Não. Não é o termo. Atrevo-me a dizer que ela era poética. Correspondia a uma certa imagem feminina que eu construíra inconscientemente. E isso digamos que mexia com o meu íntimo porque eu não conseguia precisar de onde tinha surgido este ideal feminino. Tenho a certeza de nunca ter visto mulher semelhante na realidade ou em sonhos. O que significava que eu era um joguete de emoções das quais desconhecia o propósito. Que tinham planos para mim, escondidos de mim, que seriam revelados, que nem caixa negra de um avião, quando ocorresse algum desastre. Caso tenha a sorte de passar incólume pela vida escusado será dizer que nunca os irei descobrir. Porém eu não devia pensar em desastres.
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