Eu Possuo O Conhecimento do Mundo - Parte 8

“Você está aqui para pensar em tudo,” informou-me o meu orientador no primeiro dia de trabalho.

Chamava-se Nuno e era, por assim dizer, o meu chefe. Era um ano mais novo que eu e era um gajo porreiro. Sempre alegre. Até nos dias maus, em que era ainda mais alegre. Mas completamente avesso às modas. Costumava vestir umas calças de ganga largueironas de um azul que era, como defini-lo, era desagradável. Não era escuro nem claro. Não era feio nem bonito. O certo é que não havia meio de eu gostar daquela cor. E como pude averiguar o modelo que vestia era o mesmo durante meses a fio. Portanto estamos a falar de um roupeiro repleto de calças do mesmo modelo. Já a cor das suas camisas oscilava entre o amarelo-claro e o amarelo-sujo. O cabelo era mantido curto e penteado sempre com o risco do lado esquerdo. A barba era aparada de semana a semana. E calçava umas sapatilhas castanhas todo-o-terreno. Este conjunto, nunca alterado, era completado por um casaco, estilo aviador, com óculos a condizer quer fizesse chuva ou calor. Com o tempo ele tornara-se meu amigo e era frequente irmos jantar fora e beber uns copos. Ele parecia ter gostado de mim. Apesar de não partilharmos qualquer interesse em comum. Gostava de mim possivelmente por lhe dar trela. As nossas conversas eram mais os monólogos dele do que outra coisa. Eu apenas contribuía com alguma retórica.
 

“O tudo é mesmo tudo?”

“Sim. Pense em tudo. Desastres naturais, tragédias humanas, crimes passionais, explosões nucleares, revoluções, golpes de estado. Qualquer coisa serve. Você deve estar bem informado porque estudou História.”

“Sim. Mas como funcionário público eu não devia pensar em prol da sociedade?”

“Nada disso. Se você quiser destruir a sociedade vá em frente. Sabe, o indivíduo oscila entre o negativo e o positivo e não os diferencia. Juízos de valor só o coletivo os faz. E mal, diga-se. Portanto ao darmos mais peso a um lado do que ao outro a nossa conceção da realidade estará à partida errada. E nós neste departamento queremos a realidade e nada mais que a realidade. Dentro dos nossos limites. Como é óbvio.”

“Ok. E se porventura eu me achar a bater sempre na mesma tecla? Acontece, quando as ideias são muito disparatadas.”

“Esteja tranquilo. Quanto mais neurótico for melhor. Claro que isso não será bom para si. Mas não se preocupe, Joel, nós cobrimos as despesas do tratamento psicológico e psiquiátrico. Sabemos que o trabalho da mente pode dar, não queria dizer maus resultados, mas resultados inesperados.”

“Há casos de loucura nesta profissão?”

“Tantos quanto numa caixa de supermercado.”

Digamos que na altura pensei que a comparação com uma caixa de supermercado era despropositada. Vim a saber que era somente uma tirada humorística da sua autoria. Não podia adivinhar que ele tinha sonhado em ser humorista. Mas é melhor esquecer os acidentes de trabalho.

O apartamento possuía mais duas divisões que poderiam ser usadas para outros consultórios. Mas estavam desocupadas. Parecia que esta psicóloga não gostava de competição. Percorri o corredor que sempre achei longo demais para o tamanho do prédio. Sabia perfeitamente que era tudo obra da minha imaginação mas, ainda assim, eu continuava convicto que a última porta dava acesso a uma divisão flutuante fora dos limites do apartamento. Por outro lado a iluminação dava-me a ideia de estar a caminhar num corredor de hotel. Era só colocar números nas portas e o aspeto seria de um sem pôr nem tirar. Mas nem números nem identificação do consultório de Mariana Isabel do Rosário. O seu consultório estava instalado no nono andar direito e nem havia uma pequena indicação disso na entrada do prédio. Simplesmente ninguém adivinharia que aqui existia um consultório de psicologia.

“Olá, o meu nome é Joel e queria saber se podia marcar uma consulta?”

A psicóloga tinha claramente atendido mas mantinha-se em silêncio.

“Estou? Está aí alguém? Estou a ligar para o consultório da psicóloga Mariana Isabel do Rosário?”

Se calhar devia ter-me dirigido a ela como doutora. É mais recorrente.

“Sim. É do consultório de psicologia de Mariana Isabel do Rosário.”

Do outro lado do auscultador chegava-me agora, enrolado na voz da psicóloga, um ruído de mastigação. Mas a mulher está a comer?