Eu Possuo O Conhecimento Do Mundo - Parte 5

Se a Espera era uma lógica que me satisfazia então eu de facto esperei até não poder mais. Esperei até que 2+2 se tornasse efetivamente 5. E só depois de constatar que dava 5 de todas as maneiras é que me dirigi, e perdoem-me a expressão, a um médico da carola. Que, digamos, não é médico nenhum. Mas não havia outra alternativa. Era a única. Precisava de ajuda especializada. Precisava de uma brigada de cavalaria mecanizada para deitar por baixo as paredes que construíra e onde inadvertidamente me enclausurara. Precisava que os tanques entrassem pela capital em direção ao parlamento e acabassem com o palavreado infindável.
 

“Meu comandante, general, hellraiser, whatever. As unidades estão a postos.”
 

“Ótimo, alferes Joel. Então, dê a ordem de disparo. Rebentemos com isto.”
 

“Não devíamos tentar negociar, meu napoleão?”
 

“Nada disso, garfo Joel. Desta vez nada de abébias.”
 

Isto só para dar uma ideia do que eu realmente precisava. Estava num ponto em que já nem a diplomacia ou a matemática me podiam ajudar a vencer o mítico 2+2=5. Que 2+2=5 seria até ao fim dos meus dias se eu não fizesse nada para combater isso. Ora cá está o nono andar. O momento por que esperei toda a semana. O nono andar, que se trata do último, é composto por um corredor com três portas. Duas laterais para apartamentos e uma central que dá acesso a compartimentos para arrumações. O consultório da psicóloga está instalado no nono direito enquanto que o nono esquerdo se encontra desocupado. Pendurada na porta do esquerdo pode-se ver uma folha A4 branca indicando que o apartamento estava para alugar, com um número de telefone. O anúncio fora escrito à mão, um ato invulgar num mundo totalmente computorizado. E com uma caligrafia tão intrincada que mal dava para discernir a mensagem no meio daqueles arabescos. Era difícil acreditar que a pessoa que escrevera aquilo pertencia ao século vinte e um. Um verdadeiro achado de outros tempos. A minha avó, se fosse viva, escreveria daquela maneira. Isto é, quando o rei fazia anos e com a pompa e a circunstância que isso implicava. É que a escrita para esta mulher era para ser usada só em ocasiões especiais, como o envio de postais de boas festas ou para a anotação de receitas. Jamais em toda a sua vida escrevera algo que fosse somente para si. Não foram encontrados nem poemas, nem apontamentos espirituosos, nem uma cartinha de amor sequer nas suas gavetas aquando da sua morte. Portanto nem sinal da sua vida interior. Ou seja, a minha avó era como a lua terrestre, um satélite morto. Mas a melhor imagem para a descrever seria a de um arranjo floral fúnebre, bonito mas protocolar e artificial. Provavelmente tornara-se assim por causa da morte do meu avô. Um incidente deveras lamentável: o raio do homem enforcara-se poucos meses depois da minha mãe nascer, ainda era ela criança de colo, com um cinto na casa-de-banho. Assim como quem não quer a coisa. O que terá ele visto no seu futuro para cometer um ato tão drástico? É que não se tratou de um suicídio irresponsável. O meu avô tratara de todos os assuntos pendentes que tinha e ainda garantira meios para a família manter o nível social. Portanto, um trabalho bem feito. Para a minha avó foi coisa para lhe desnortear a cabeça, é certo, mas para mim, uma criança feliz, essa tristeza que emanava constantemente dela era insuportável. Daí desde muito cedo ter desenvolvido um ódio por ela. Creio que ainda hoje detesto a minha avó por ter manchado a minha infância com o seu cheiro a morte e com os seus mon chéri. Blergh! Enfim, são coisas de miúdo que perdurarão toda a vida, e como eu não tenho falta de memória será mesmo toda a vida. Agora aquele anúncio de aluguer tratava-se de um notável exemplo de caligrafia, se bem que anacrónico, para um anúncio desta natureza. Seria o proprietário do apartamento um calígrafo? Ou então apenas alguém sem jeito para o negócio, pois ainda não conseguira rentabilizar o apartamento. Dizem que a crise financeira afetou, em especial, o mercado imobiliário. Presumo então que este proprietário seja uma dessas vítimas. Felizmente eu escapei a essa tragédia. Mudei-me para cá dois ou três anos depois do edifício ter sido construído, e comprei o meu apartamento com dinheiro emprestado pelo banco. Agora tenho prestações para pagar até aos cinquenta anos. Que absurdo de tempo! E ainda só tenho trinta e oito. Mais dez anos de obrigações bancárias. Afinal quem é que me governa? Os bancos ou o estado? Enfim. Claro que desde o começo da crise um pobre assalariado está impedido de fazer este tipo de aventuras. Espero sinceramente que o Departamento de Sincronização da Câmara Municipal não encerre as portas. É que com este tsunami de cortes nunca se sabe onde vai cair a tesoura. Em princípio isso não acontecerá, pois a profissão de sincronizador é relativamente nova e o meu chefe garantiu-me que é emprego para a vida. Um sincronizador é... Bom, toda a gente já ouviu falar de detetives privados, agentes secretos, assassinos profissionais e hipnotizadores, não é verdade? Porém a maioria irá morrer sem nunca se deparar com um, ou se tal acontecer em princípio não terá conhecimento disso. Ora bem, um sincronizador pertence a esta categoria de profissões misteriosas. E digamos que é tão misteriosa, ou melhor, estranha segundo os padrões de normalidade que eu precisaria de duas vidas para explicar o que faço. O certo é que os sincronizadores desempenham uma função tão importante que já nenhuma instituição pública passa sem eles. A sociedade dá cada volta. Não se pode contar com ela para nada. E eu que tirei um curso universitário de História. Para quê? Pretendia dar aulas ao secundário. Uma ideia que, não sei como, me punha bastante feliz. Dar aulas. Ensinar. Semear sabedoria na cabeça de adolescentes ávidos de conhecimento. Sem dúvida uma grande lengalenga que contava a mim próprio. Desde quando um adolescente é um ser ávido de conhecimento? Idealmente seria assim mas a realidade está cá para nos desmentir. Eu, na altura, queria, muito sinceramente, era que tudo fosse para o car****! Tudo. Então onde é que fica o conhecimento? No car****. Como se vê eu era um rapazola adorável. Com efeito os anos de universidade são bons é para limpar o rabinho e para providenciar lavagem cerebral às camadas superiores da população. Quanto àquele que por descuido ou génio vá para parar ao ensino superior vindo de uma classe inferior acaba por se transformar num revoltado. Foi o que me aconteceu, mas como foi por pouco tempo, o resultado consistiu em passar de revoltado a falhado.