Eu Possuo O Conhecimento Do Mundo - Parte 6

Da revolta à desilusão foi um passo e o resto da universidade foi um descalabro. Mas no fim de contas as coisas até correram pelo melhor. O meu pai tinha contactos na câmara municipal, de maneira, que foi só eu voltar a casa para no espaço de duas semanas me encontrar a trabalhar no recém-criado Departamento de Sincronização. Os requisitos pedidos eram que os candidatos tivessem menos de trinta anos, procurassem o primeiro emprego e fossem formados por uma universidade pública. O último requisito era eliminatório. Estavam claramente à minha procura. As razões por detrás de tal exigência prendiam-se com os interesses económicos do estado, com alta especialização do trabalho, com estatísticas de empregabilidade dos institutos públicos, etc. E várias patranhas do mesmo género. Público versus privado. A questão social de sempre. E o privado, neste caso, saia a perder porque os sincronizadores atuavam no melhor estilo Robin Hood. Assim o diziam. Eu não tinha outro remédio senão acreditar porque passava o dia sentado com um capacete ligado a um computador. Bastava-me estar ali sentado e o cérebro fazia tudo. Porreiro. Portanto achei-me com um trabalho fácil que me proporcionaria uma vida igualmente fácil. Trinta e cinco horas semanais, fins de semana e férias garantidas, os devidos seguros, uma atividade que não exigia esforços físicos, em suma, um trabalho perfeito. Rifas destas nem na farinha amparo. Acho que até foi essa constatação que me levou a requerer os serviços de um psicólogo. Quer dizer, eu não acredito em trabalhos perfeitos. Daqueles em que ninguém suja as mãos e que é possível esquecê-los depois de várias horas no duro. Se fizermos trabalhos de burro ficaremos burros. Eu sei demasiado para saber que trabalhos perfeitos são apenas teoricamente possíveis e que nada na realidade existe de parecido. Portanto havia tramóia. E era eu que me andava a enganar. Com toda a certeza. Porque estava a participar no jogo e a curtir a cena. Mas logo logo as contradições começaram a surgir. E eu sem poder abrir a boca. Tinha de falar com alguém fora dos círculos habituais de convívio. E não podia fazê-lo com qualquer pessoa, não que estivesse em posse de um segredo de estado, mas porque ninguém que tivesse uma profissão normal, como por exemplo um padeiro, poderia entender o que eu estava a passar. Não podia falar com alguém muito quadrado. Esse tipo de pessoas não tem poder de encaixe. É quadrado e ponto final. Não aceitam outra forma. Eu tinha de me dirigir a alguém capaz de lidar com as mais variadas formas, ou seja, uma pessoa que não exigisse perfeição por ser ela própria imperfeita. Intimamente eu não queria ser julgado como uma ovelha negra. Não queria ser reeducado. Queria apenas compreensão.

Empurrei a porta do nono direito, que estava apenas encostada. A pressão da mola que a mantinha fechada obrigava-me a aplicar alguma força no puxador. Este combate secreto fazia a mola ressoar impercetivelmente enquanto cedia para me deixar entrar. Para mim era um discreto sinal de boas-vindas. Que indicava que eu podia baixar as minhas defesas. Ao entrar no apartamento senti de novo a insólita impressão de que as paredes tinham sido pintadas recentemente. Não sabia explicar porquê, mas era como se estivesse a entrar numa casa ainda por habitar. Aqui o ar era sempre fresco como se fosse importado diariamente de alguma montanha intocada pela civilização para este cubículo de modernidade. Além da pureza do ar o apartamento abrigava um silêncio total. Nenhum som penetrava estas paredes. Não se ouvia nem uma buzina de automóvel, nem o chilrear de um pássaro, nem sequer a filha dos vizinhos de baixo que adorava ouvir música como se estivesse num festival. E a esta hora ela já devia ter voltado da escola o que significava que o concerto começara. Confesso que gosto da música que a garota ouve. Parece post-punk. E é tão raro ouvir músicas nesse registo hoje em dia. Virou tudo New Order. Infelizmente ainda não tive a oportunidade de lhe perguntar que bandas ouvia. É que ela tinha dezasseis anos e se eu lhe falasse com demasiado interesse tinha a certeza que iriam surgir mal-entendidos entre todas as partes envolvidas. Provavelmente não aconteceria nada de especial se eu fosse casado e com filhos. Mas como não é o caso era melhor tomar algumas precauções para não chocar de frente contra o preconceito. As músicas que ela ouvia também não passavam nos canais mainstream por isso para as encontrar seria um trinta e um. Talvez quando ela fizer dezoito anos. Mas não pensemos mais nisto pois a música não chega aqui. O silêncio é completo. Imagino que a minha psicóloga tenha investido num sistema de isolamento de topo, daqueles que se costumam encontrar em estúdios de gravação de som, porque apesar da construção recente o isolamento sonoro do edifício não era espetacular.
 

Entretanto a porta fechara-se emitindo um ruído abafado ao tocar nos batentes de borracha. Até à porta do consultório separava-me um corredor iluminado a meia luz por pequenos projetores embutidos no teto. A única divisão aberta era a sala de espera. Esta sala encontrava-se mobilada com um grande sofá preto e uma televisão LCD equipada com canais por cabo. Na parede estavam pendurados alguns quadros de paisagens. Uma marítima, uma campestre, uma urbana e uma de montanha. Compunham um jogo cromático de azul, verde, vermelho e branco. A um canto havia uma mesa com uma máquina de café expresso e uma pequena vitrine com miniaturas de bolos de pastelaria. Muito atenciosa esta psicóloga. A televisão estava sempre a funcionar sem som. Penso até que nem deve ter colunas pois já tentara levantar o volume sem sucesso. O silêncio era obviamente estudado para proporcionar algum tipo de relaxamento. Eu pelo menos sentia-lhe o efeito. Caso a psicóloga abandone este apartamento não perderei tempo a mudar-me para cá. Ela não tinha nenhuma secretária ao seu serviço de modo que os clientes é que se geriam. Primeiro tu, depois eu. Não estava ninguém na sala de espera o que significava que ou estava alguém a ser consultado ou que era eu o único cliente. E secretamente desejava ser o único cliente. Secretamente desejava ser a única razão que fazia Mariana Isabel do Rosário vir a este prédio. Queria que na sua agenda constasse apenas o meu nome Joel Ilitch. Em todas as horas, em todos os dias. O meu nome obsessivamente escrito com a sua mão artisticamente desenhada para anotar os meus devaneios. Sei que ela tem um ficheiro dedicado à minha pessoa. Sei que por lá se encontra o meu ego despido. Será que sou de bom material? De que pedra sou feito? Posso ser esculpido, polido até resplandecer, aperfeiçoado de maneira a ser um homem melhor? Até ser uma escultura de Rodin? Ela terá a sua opinião formada mas sempre que sou demasiado direto ela oculta a sua voz, a sua verdadeira voz, atrás de uma platitude qualquer que eu poderia encontrar num livro de iniciação à psicologia. Basicamente falávamos sobre nós sem contudo tocarmos no assunto. Como se tivessemos consciência de que um movimento demasiado brusco lançaria por terra os nossos esforços, que nem uma pirâmide de cartas. Era verdadeiramente mágico falar com ela. Mariana, a mágica. E aqui estou eu, prestes a entrar novamente nesse reino onde a existência é a minha inexistência, ou seja, todo o meu ser que permanece escondido de mim próprio.
 

“Costuma lembrar-se dos seus sonhos,” perguntara ela na segunda ou terceira consulta.
 

“Não.”
 

“É dado a longas fantasias enquanto acordado?”
 

“Nem por isso. Mas por vezes imagino-me nas situações mais improváveis.”
 

“E por acaso alguma vez se viu nessas situações improváveis?”
 

“Para ser sincero, não. É que eu já acho a minha vida bastante improvável. Sou incapaz de imaginar-me a mim próprio na minha vida.”
 

Constatei que havia demasiado Eu em tudo o que dizia. Aqui ela parou o interrogatório para fazer algumas anotações.
 

“Alguma vez se sentiu perdido?”
 

“Não.”
 

“Nunca esteve em sítios desconhecidos, sem alguém a quem pudesse pedir ajuda?”
 

“Sim. Algumas vezes.”
 

“E nessas situações não entrou em pânico?”
 

“Não. Sinceramente não me lembro de alguma vez ter sentido pânico.”
 

Ela voltou a fazer uma anotação.
 

“Acha isso normal?”
 

“Não sei. Mas espero que você me diga.”
 

Ela ficou em silêncio. Eu presumi que o interrogatório tinha acabado.
 

“Imagino que pensa que este consultório é o sítio mais improvável onde esteve até hoje.”
 

“Sim, de facto, é nisso que penso.”
 

“Isso significa que você também tem dificuldades em aceitar a minha existência.”
 

Bingo. Nas primeiras semanas, todas as forças do meu ser estavam concentradas em negar a existência da minha psicóloga.