Tour de Force

Adivinhavam-se tempos difíceis. E a quem podia pedir ajuda? Aos meus pais? Desde que comecei a trabalhar como sincronizador que virtualmente somos desconhecidos. O meu trabalho é tão fora deste mundo que é impossível explicá-lo a uma pessoa comum. O produto da minha atividade era invisível e de natureza conspirativa. Isso obrigava-me a esquivar-me de maneira a não tocar no assunto com os meus pais. A ocultação das minhas rotinas e opiniões não se fez esperar. Os nossos telefonemas agora não passavam de meros olá, adeus, como estás. Isto exclusivamente com a minha mãe. Pois quanto ao meu pai já nem me lembrava da sua voz. Dois anos sem ir a casa danificaram seriamente a minha ténue relação com ele. Creio que nem ele nem eu nos importávamos com essa fatalidade. Além disso o meu pai mostrava os seus primeiros sinais de demência. Segundo a minha mãe ele passava os dias sentado na poltrona a assistir a emissões de ciclismo. Quando estas não haviam, metia-se a pedalar na bicicleta de treino que comprara. Passava horas a fio naquilo. É possível que por esta altura tenha completado as competições ciclísticas de todos os países que existem. Sem sair de casa. Eu bem que lhe dissera que ele precisava de se manter ocupado, e que a idade da reforma não era razão para abandonar o que fazia antigamente. Mas o meu pai fez orelhas moucas. Decidiu-se a vender o restaurante familiar onde tinha colocado quarenta anos da sua vida, o Restaurante Paulo, batizado em homenagem a ele próprio. Hoje ninguém dá o seu nome a estabelecimentos comerciais. Só os saudosistas, sempre com a cabeça noutro tempo que não o deles. Tempos, porventura mais honrados, visto que não há outra palavra para os definir. Quando o resultado do trabalho feito era proporcional ao tempo despendido nele. Essas contas acabaram. Realidades virtuais e computadores quânticos tornaram de vez o trabalho mental no único motor da sociedade. Basicamente hoje em dia correr não nos leva a lado nenhum, a não ser que se queira ser estrela pop ou político. Uns para manterem a perfeição corporal outros para caçarem os melhores cargos. A fronteira que separa essas duas ocupações é atualmente inexistente. Tanto que se tornou regra os candidatos a membros do governo passarem primeiro por escrutínio popular, num qualquer programa televisivo de entretenimento. Creio até que o presidente da câmara atual ficara conhecido por se ter espalhado a andar de skate. O tralho tinha tanta piada que o vídeo correu o mundo pela internet. A popularidade dele era imensa. Uma coisa inacreditável. O talento deste indivíduo era cair com estilo. Chegara a participar como imitador das quedas do Buster Keaton num programa de talentos. Não ganhou, mas foi o suficiente para ser recrutado por um partido político, do arco da governação, que o levou até onde ele se encontra hoje. Se tivesse feito as coisas doutra maneira bem que podia ter arranjado um cargo no governo nacional como não o fez ficou-se pelo regional. O Nuno era fã dele desde o início. De vez em quando lá saia um “O medo é coisa que não me assiste.” Frase da autoria do nosso presidente. É um clássico, costuma dizer o meu chefe.

Sherlock

Creio ter notado uma ponta de gozo na cara de Niil. Possivelmente causada pela minha cara subitamente branca ao ouvir que podia ficar sem mão. Contudo isto não passavam de perceções intimas, pois nenhuma alteração se dera de facto na expressão facial dela nem eu ficara pálido.

“O poder só se manifesta em ti enquanto estivermos em contacto. Se eu largar a tua mão voltarás a ser um homem normal. Consegues imaginar o que vai acontecer ao teu braço, aposto.”

Obviamente que conseguia imaginar. Via sangue a correr por todo o lado. De maneira que apertei a mão de Niil com a intenção de nunca mais a largar. 


"Escusas é de me magoar."

“Ah, pois, claro. Onde é que eu estava com a cabeça? Então se o ritual de iniciação está concluído que tal irmos para casa? Vou encomendar uma pizza.”

A partir deste momento comecei a tentar construir a minha vida com Niil. A pizza seria o meu primeiro passo na direção de uma vivência comum harmoniosa. Todos os putos gostam de pizza. É mais forte do que eles. Entretanto as nossas mãos emergiram das profundezas da mesa e eu pude largar a de Niil seguro que não ficaria sem ela. A sensação de retornar a ver o meu membro intacto surgiu-me semelhante a alguém que volta a casa, depois de ter feito uma longa viagem. A minha mão estava deveras contente por voltar a casa.


“Gostas de pizza, não gostas?”

“Não vais ver o que está dentro do livro.”

Niil ignorou completamente a minha pergunta. Se calhar não gostava de pizza como era normal. Afinal ela não era normal. Ou então também adquiriu o hábito da mãe de nunca responder àquilo que se pergunta. Um ato que um estranho poderia achar absurdo mas que não era de todo. Não existe nada pior, para uma relação, do que responder objetivamente durante uma conversa. Se atuarmos assim não temos conversas, temos esgrima de egos. Niil tinha razão. Convinha dar uma vista de olhos a esse livro que marcou a minha imaginação desde o início.

Olhei para contornos da estante que sobressaiam da penumbra do consultório iluminado somente pela luz da secretária da Mariana. A escuridão no exterior era total. Achei isso estranho pois junto ao prédio haviam uns quantos outdoors iluminados. Que de certeza projetavam alguma luz nos apartamentos dos andares mais elevados. O mostrador do meu relógio de pulso mostrava que eram 21 horas e 23 minutos. Não passara assim tanto tempo desde a minha sesta. Com tanta informação a ser-me transmitida imaginei que seria mais tarde. Os outdoors desligavam-se a partir das 23. Comecei por crer que o consultório também se encontrava metade no vazio. Desde que pusera os pés no apartamento a primeira impressão que tive é que o corredor estava estendido sobre o ar e que não havia outra coisa senão vazio sob os meus pés. Mas isso era impossível. O nono andar direito existia e cumpria as regulamentações do prédio. O dossier do projeto mostrava claramente o apartamento tal como ele era na realidade, com a sala onde funcionava o consultório ao fim do corredor. Portanto a explicação para a ausência de luz proveniente do exterior não era de ordem sobrenatural. Talvez as janelas tivessem vidros especiais que impediam a iluminação noturna de entrar. Se o apartamento fora isolado acusticamente então essa hipótese era plausível. 


Niil mantinha-se impávida, à minha espera, com os seus olhos cinzentos apontados à minha cara.

“Sabes que tens os olhos da tua mãe?”

“No shit, Sherlock.”

“Ok.”

Niil não era fã de observações óbvias. Se íamos ter este tipo de intercalações todos os dias então ia mesmo precisar de toda a ajuda que conseguisse reunir. Era melhor ver o que a minha ex-psicóloga tinha para mim, guardado dentro do Dogma.



Niilismo

Não havia mais mensagens e eu não tinha um buraco onde me meter para fugir da situação. Niil, a rapariga de cabelo azul, fitava-me com cara de caso. Um misto de curiosidade e ceticismo invadiam aquela face de criança de doze anos, que até há pouco não tinha mostrado qualquer emoção.

“Chamas-te Niil?”

“O meu nome é Niil.”

O vazio emocional voltou à face dela. E como se eu não acreditasse no nome bizarro que Mariana lhe tinha dado, Niil arrancou uma página da agenda e escreveu o seu nome.


 

“Toma.”

Niil estendeu-me o pedaço de papel amarelado. Peguei nele mas não me passou pela cabeça que ela queria que o guardasse.

“Guarda. Assim não esqueces.”

“Ok.”

Dobrei o papel e coloquei-o no bolso interior do casaco juntamente com a minha carteira. O nome de Niil estaria mais do que seguro ali. O que entra nos bolsos do meu casaco fica lá durante meses. Intacto e preservado da passagem do tempo. Trata-se de uma peça de vestuário que nunca esqueço em absolutamente lado nenhum. Quando uma vez por distração deixara um casaco num restaurante, onde tinha jantado com o Nuno, obriguei o dono do estabelecimento a abrir portas, depois de fechado, para o recuperar. Não podia voltar a casa sem o casaco. O que sai de casa comigo deve voltar a casa comigo no final do dia. Chamemos-lhe uma das fundações da minha vida. Outra das fundações consistia em nunca dormir em camas alheias. Enquanto estudava na universidade e qualquer circunstância me obrigava a dormir fora da minha cama, geralmente celebrações estudantis realizadas para celebrar, creio, o absurdo da vida universitária, eu ficava pior que estragado. Era preciso no mínimo uma semana para me recompor, e voltar a ser eu próprio. É que era certo que iria sofrer de insónias constantes, que me obrigariam a viver num estado de sonambulismo diurno guiado por desejos provenientes sabe-se lá de onde. Ou seja, um Joel muito primitivo surgia em meu lugar. Há gente que adora viver assim. Eu não. Esse rebaixamento da consciência é um processo que só admito após as refeições. Detesto essa existência exterior a mim. Portanto sair de casa e voltar a casa é fundamental para o meu bem-estar. Não se trata de ser avesso a aventuras. Mas para mim ser obrigado a sair da minha zona de conforto contra a minha vontade é perto, em sensação, de ser metido num comboio em direção a um qualquer campo de concentração, tenha ele o nome e a forma que tiver. Quem diz isto diz parques de diversões, escolas, salas de cinema e outros sítios onde a minha entrada pressupõe a permanência até ao final previamente combinado. Claro que qualquer um pode sair. Mas terá que arcar com as implicações sociais de um ato de vontade individual. Não me agradam este tipo de atividades coletivas de caráter coercivo. Chamem-me o que bem entenderem, traidor, infiel, agitador, herege, é-me indiferente. Isto faz-me recuar até à minha infância. Quando o rei fazia anos os meus pais metiam férias e íamos acampar. Eram garantidos pelo menos quinze dias seguidos de vida comum ao ar livre. E sem consolas portáteis, nem leitores de música, pois não havia dinheiro para essas coisas, não havia forma de me evadir de uma dimensão que eu considerava hostil. Para me abstrair era obrigado a passar o tempo a brincar com outros miúdos que nada tinham em comum comigo. Importa dizer que em vez de me divertir ficava cansado de aturá-los. Por outro lado, era uma verdadeira alegria quando encontrava alguém com uma consola portátil, um miúdo rico geralmente. Era certinho que esse miúdo teria o meu coração. Como os meus pais eram gente de hábitos vincados, o parque de campismo escolhido era sempre o mesmo, de maneira que frequentemente tinha a sorte de me encontrar com um miúdo americano, que aparentemente vivia em permanência no parque e estava sempre equipado com as últimas novidades em videojogos. Não me recordo do nome dele. Para mim ele será sempre o miúdo americano. Será que a Niil gostava de videojogos? Pelo que entendi eu teria de ficar com ela até que a Mariana voltasse. Tinha que entretê-la com qualquer coisa. Ela entretanto voltara a desenhar. Agora desenhava um potente carro desportivo vermelho, que mais parecia uma nave espacial. Pelo menos sabia que ela gostava de desenhar. Pensei que seria uma boa ideia comprar-lhe um sortido de marcadores. Se bem que ela já tinha um. Eu não estava a ver donde tinha desencantado aqueles com que estava a desenhar.

“São teus?”

“Não.”

“Então?”

“São daquela a que chamas Mariana.”

Descobrir que os marcadores pertenciam à Mariana não me surpreendera. Só que o sítio onde eles estariam guardados seria numa das gavetas da secretária. Que estavam fechadas à chave. Tendo confirmado isso ao entrar no consultório. Logo só arrombando. Ato que provocaria um estrondo capaz de me acordar. O que não aconteceu. Então havia que considerar que existia um compartimento secreto, algures, que era conhecido por ela.

“E podes dizer-me de onde os tiraste?”

“Da gaveta.”

“Mas a gaveta está fechada à chave. Por acaso tens a chave?”

Se calhar tinha, afinal estava a falar com a filha da Mariana. Niil parou de pintar freneticamente o carro de vermelho, deixando a traseira meio pintada, e tapou o marcador. Pôs-se a olhar para mim. Reparei que, excluindo o cabelo, conseguia encontrar na boca, no nariz e nos olhos, que também eram cinzentos, traços de Mariana. Insolitamente as sobrancelhas também eram azul-celeste.

“O teu nome é Joel.”

“O meu nome é Joel.”

A minha voz não me pareceu a minha. Era como se um cordão tivesse sido puxado e eu como marioneta respondia à vontade do meu mestre. Era Niil, esse mestre?

“Conheces a Rei.”

“Conheço a Rei.”
 

Supus naturalmente que falávamos da Mariana. Rei, outro nome bizarro. Devia tratar-se de uma tradição familiar.

“Desde.”

“Conheço a Rei faz mais ou menos um ano.”

“Ela nunca te falou de mim.”

“Nunca.”

A Mariana que agora se chamava Rei nunca tinha referido que tinha uma filha. Afinal a nossa relação era terapêutica e nada mais. Além disso nunca imaginara a Rei com filhos. Afinal que idade tinha ela?

“A Rei tem trinta e um. Eu não sei que tipo de relação tens com a Rei mas acho estranho que ela não tenha falado de mim.”

“A Mariana era a minha psicóloga.”

“Isso já sabemos.”

E o que é que havia mais para saber? Niil estava admirada da minha ignorância relativamente à sua existência. Mas não havia razões para isso. Mariana, ou Rei, era somente a minha psicóloga e a sua vida pessoal era um assunto sem relevância para o meu caso. Se bem que ela ao longo das consultas teve a oportunidade de reunir bastantes informações sobre a minha vida pessoal e social. Não pude evitar sentir que a minha privacidade fora invadida sem o meu consentimento. Mas era um sentimento infundado, eu consentira. Apenas não pensara nas implicações disso.

“Queres ver a tua ficha?”


"Não."


Após dizer isto Niil ergueu a sua mão esquerda de maneira a mostrá-la por inteiro. Pois ela vestia uma camisola cinzenta cujas mangas eram grandes demais para os seus braços. Ela queria que eu olhasse para a mão. À primeira vista não vi nada de especial. Uma mão de garota. Pequena. Que possivelmente caberia na minha mão fechada. Mas de seguida, pensando na altura que a minha visão me estava pregar uma partida, a mão de Niil tornou-se transparente.

“Sim. A minha mão encontra-se metade no vazio. É por isso que consegues ver através dela.”

Niil colocou a mão à frente da sua cara para eu comprovar o fenómeno. E, sim, eu conseguia ver a sua cara através da sua mão.

“Que espécie de poder é esse?”

“Não sei. Acho que sou a única no universo que consegue fazer isto. Dá-me a mão.”

Eu entreguei-lhe a minha mão direita, que ao tocar na de Niil foi tomada por um frio intenso. A sua temperatura era extremamente baixa para um ser humano. Parecia que eu estava a tocar na superfície interior de uma arca congeladora. Não podia ser um frio real, caso contrário, teria queimado a mão imediatamente. Tinha conhecido pessoas com mãos anormalmente frias mas nada que se comparasse àquele gelo.

“A tua mão está gelada. É normal?”

“É melhor acostumares-te. É a minha temperatura habitual.”

“Caso único. Pelo menos no meu universo.”

“Sim, mas olha para a tua mão.”

A minha mão estava a tornar-se translúcida como a de Niil. Por momentos temi que ela fosse desaparecer completamente mas, a partir de um certo ponto, a opacidade estabilizou. Com a minha mão sobre a da pequena Niil, além de conseguir vislumbrar-lhe os dedos também conseguia ver os marcadores espalhados sobre a secretária.

“Eu consigo transportar o que toco para outra dimensão. Eu chamo-lhe vazio. Mas na verdade é um mistério até mesmo para mim.”

“Quer dizer que consegues atravessar para o vazio.”

“Nope. Eu não consigo ficar invisível.”

“Ainda bem.”

“Why.”



Realmente não havia razão para ficar satisfeito com esse pormenor. Ao ver o que ela conseguia fazer com a minha mão, concluíra que eu também poderia ficar invisível, e isso seria útil para andar de transportes públicos de borla. Só que a hipótese de ter uma garota invisível em casa incomodava-me.

“Agora vou mostrar-te o que se pode fazer com este skill.”

“Espera, nasceste assim? Já a dominar este poder?”

“Não entendo o conceito de nascer. Ou existes ou não existes. Agora mantém-te calado, Joel. Fazes demasiadas perguntas. Vê só.”

Niil puxou-me a mão na direção da mesa fazendo-a atravessar o tampo. Sem que a madeira oferecesse qualquer resistência.

“Porreiro. Então consegues atravessar portas e paredes.”

Assim se explicava eu não ter notado a entrada de Niil no apartamento.

“Qualquer material. E qualquer pessoa ou objeto que eu queira também o pode fazer se mantiver contacto físico comigo. Percebes agora como é que eu arranjei os marcadores.”

“Claro como água.”

A minha mão continuava engolida pela secretária de Mariana e envolvida pelo frio de Niil. Mas a última coisa em que pensava era neste fenómeno. Eu ia viver os próximos tempos, que podiam consistir em semanas, meses ou anos, pois não havia como saber quando Mariana regressaria, com aquela estranha rapariga de cabelo azul-celeste e poderes sobrenaturais, logo tinha que arranjar um quarto para ela. Não me parecia correto pô-la a dormir na sala.

“Bom, Niil, as apresentações estão feitas, podes largar-me a mão?”

“Só se quiseres ficar sem ela.”




You've Got Mail

Pressionei o botão do voice mail e depois de ouvir a indicação de mensagem nova seguida de um beep a voz da Mariana começou a sair do telefone.

“Joel, se estás a ouvir esta mensagem é porque eu me encontro fora dos teus limites. Dos teus limites humanos. Isto significa que de momento eu não posso ser encontrada por ti. Por isso não tentes procurar-me. É estranho, eu sei, mas não precisas de entender. A minha filha Niil vai acompanhar-te nos próximos tempos. Ela irá proteger-te até ao meu regresso." 

Niil olhou para mim de uma forma que, me atrevo a dizer, expressava verdadeira curiosidade. Eu sentia o mesmo pois não estava a ver de que maneira uma miúda me poderia proteger.

"Peço-te que a trates, nem mais nem menos, como se fosse a tua filha. Por esta altura deves estar preso no consultório. O sistema de segurança bloqueia as portas e as janelas do apartamento a partir das vinte. O código de desbloqueio é Zero, Nove, Zero, Cinco.”

Por detrás da voz de Mariana podia ouvir-se o ruído de automóveis e transeuntes numa rua movimentada. Ela apesar de se encontrar fora dos meus supostos limites humanos ainda respirava neste mundo.

“Joel, mais uma coisa. Pode ajudar, não sei. É mais um palpite do que uma certeza. Dentro do livro com o título Dogma, deves lembrar-te dele, guardo dois objetos que me ajudam nos momentos difíceis. Podes usá-los. Talvez te ajudem. Agora tenho que desligar. Esperam por mim. Acredita que nada disto foi planeado. Adeus.”

Beep. Não tem mais mensagens.

Joel versus The Universe

A rapariga podia ter tido a delicadeza de me acordar. Afinal eu tinha adormecido num sítio impróprio, no divã do consultório da minha psicóloga. Em casa, na minha cama, dormiria de forma mais confortável. Mas não o fez. Deixou-me em paz. Assim se semeiam boas relações e a nossa parecia começar na base do respeito mútuo. Além disso éramos duas almas abandonadas pela mesma mulher. Algo nos unia à partida. Talvez até pudéssemos ser amigos se bem que a cara inexpressiva dela me punha um pouco desconfortável. Ela não teria outro sítio para ir? Uma vez que o encontro com a Mariana, que lhe tinha dito para a esperar, não se realizara a rapariga estava livre para ir à sua vida. Aparentemente não tinha outros compromissos. Que precisão tinha ela de ficar ali? Estava ali para me fazer companhia? Tinha pena de mim? Se sim, eu também tinha pena dela. Com a sua idade, dava-lhe doze, portanto uma criança, o abandono por parte de alguém mais velho era um evento difícil de aceitar. Quanto tempo podemos esperar por alguém até começarmos a duvidar? Aproximei-me da secretária. A rapariga não se dignou a olhar para mim e continuou os seus desenhos. Fazia-os com todo o desplante nas folhas da agenda. Mesmo considerando o desaparecimento de Mariana achei que a rapariga se estava a precipitar ao tomar de assalto os objetos da psicóloga. Ela ainda poderia aparecer. E em todo o caso os pertences dos que desaparecem merecem algum respeito. Não são nossos. Pelo menos até serem encontradas provas do fim do proprietário. No entanto a rapariga do cabelo azul-celeste parecia não tomar isto em conta.

“Ei, também foste abandonada? Obrigado por não me acordares. Estava mesmo a precisar de uma sesta.”

Aquela cara completamente despojada de emoções levantou-se na minha direção.

“No problem.”

Voltou ao que estava a fazer. Desenhava a marcador, muito concentrada, quatro pessoas. O seu traço era infantil. Os corpos não passavam de palitos. Mas era possível identificar duas mulheres, um homem e uma criança. O homem, creio, era eu. Pelas sapatilhas e pelo casaco. As restantes figuras identifiquei como sendo a rapariga do cabelo azul, a psicóloga Mariana e outra Mariana, que ainda só tinha a cabeça.

“Duas Marianas,” exclamei não conseguindo conter o meu espanto.

“Uma é a que chamas Mariana mas a outra não conheces,” explicou a rapariga sem olhar para mim.

Analisando com mais atenção os últimos retoques feitos ao desenho a segunda Mariana usava calças e uma t-shirt decorada com uns gatafunhos. Ao contrário daquela que era psicóloga e envergava o habitual vestido azul-marinho.

“Uma t-shirt de uma banda rock?”

“Joy Division.”

Confirmava-se. Era a tal Mariana fantasmagórica descrita pelo sr. Mário.

“Estou a ver. Está muito giro. Tens imenso jeito.”

Pensei que se quisesse escrever um livro infantil aquela seria a capa. Mas quanto à minha figura teria que ver reduzido o tamanho da barriga. A rapariga tinha-a imaginado um pouco inchada. De resto estava bastante simpático. Eu não estava assim tão gordo como no desenho. Se bem que também não estava magro. Longe ia o tempo da elegância juvenil, resultado de refeições quando calhava e de andar sempre de um lado para o outro a perseguir ideais. Assim era fácil manter a linha. Mas o que fazer, quando se trabalha num escritório com o rabo, o dia todo, assente numa cadeira, para não ficar ao fim de uns meses literalmente com outro corpo? Ir ao ginásio, ter cuidado com a alimentação e consultar um nutricionista? E dinheiro e tempo para isso? Não faria mais nada senão pensar na minha barriga e no meu nariz. Além de que nunca pretendi ser modelo ou atleta olímpico. Como se ser cidadão já não fosse uma tarefa árdua. Malditos credos que inventamos para dar sentido aos dias. Primeiro éramos católicos agora somos helenistas. Quanto mais pensava nas exigências da vida urbana mais a vida rural me surgia pintada de verde e dourado. De qualquer das formas, de onde teria a Mariana desencantado esta rapariga. Que espécie de ligação havia entre as duas? Uma rapariga que tinha o à-vontade para estar no consultório dela a desenhar na sua agenda com marcadores coloridos, que sabe-se lá de onde ela os tirara.

“Alguém telefonou enquanto estavas a dormir.”

Apontou para o telefone que mostrava uma luz vermelha a piscar.

“Deve ter sido a Mariana.”

“Não sei. Não ouvi a mensagem. Ela não gosta que mexam nas suas coisas.”


Disse isto depois de ter atacado a sua agenda com arte. Mas eu não estava interessado em questionar a conduta da rapariga. A minha cabeça estava noutro sítio. Estava no vazio, por assim dizer, pois eu tentava localizar mentalmente a Mariana e a única coisa que encontrava era um nevoeiro cerrado.

“Precisamos de saber se é ela. Deve ter acontecido alguma coisa para ela não aparecer.”

“Tu é que sabes. Não sei que relação tens com a que chamas Mariana. Mas eu cá não mexia em nada.”

Porque é que esta rapariga se está a referir assim à minha ex-psicóloga? A resposta para essa questão ficará para depois. Primeiro queria ouvir a mensagem.




There Is A Light That Never Goes Out

Eu resistia em dar ao sonho uma qualidade profética mas era nisso que a minha lógica apostava. Desejava recuar no tempo. Bastava uma semana. Para que pudesse falar-lhe francamente. E dizer-lhe o quê? Mariana, podíamos, não, não devia tratá-la sem rodeios, ela era a minha psicóloga, não se tratava de uma amiga. Vistas bem as coisas nunca a tratei de forma direta. Tinha o cuidado de introduzir um mas, um então, um comentário de circunstância, antes do seu nome. Ao proferir o nome em primeiro lugar sem qualquer método introdutório creio que seria um gesto violento. Provocaria uma alteração demasiado brusca na nossa relação. Também não podia ser leviano ao ponto de combinar um café. Mariana, podíamos combinar um café? Era isto que eu queria dizer-lhe se recuasse uma semana. Contudo, na semana passada tal ideia não me tinha passado pela cabeça. Estava portanto satisfeito com aquele estado uterino. O que significava que se recuasse no tempo acabaria por agir do mesmo modo. Ficaria calado e satisfeito. Que nem uma figura de Buda. Diabos! Era inútil continuar a pensar. Ia levantar-me e voltar para casa. Contudo hesitei. Uma vez que tudo tinha passado dos limites, dos meus limites, não havia motivo algum que me fizesse ir a correr para casa. Encontrava-me sozinho no consultório da minha psicóloga, que não apareceu à hora combinada. Não deixara qualquer recado nem telefonara para avisar que não vinha. Definitivamente algo tinha acontecido. Considerei a possibilidade da psicóloga Mariana Isabel do Rosário ter desaparecido da minha vida. Podia estar morta. O sonho indicava-me que ela precisava de ajuda. Não lhe dei atenção e agora encontrava-me preso no seu consultório. Eu não estava preso. Fora apenas um sonho. A minha mente estava a jogar ao telefone avariado. Estava a entender tudo ao contrário. Ok. Rise and shine. Estava no momento de cometer crimes e vasculhar as gavetas da minha ex-psicóloga. Libertei os olhos da minha escuridão e preparei-me para enfrentar outra escuridão. Mas imaginem qual não foi o meu espanto ao descobrir a rapariga de cabelo azul-celeste sentada à secretária, cujo candeeiro emitia a única fonte de luz do consultório. Claro, tinha-me esquecido. Naquele dia não era a única pessoa à espera da Mariana.