Joel versus The Universe

A rapariga podia ter tido a delicadeza de me acordar. Afinal eu tinha adormecido num sítio impróprio, no divã do consultório da minha psicóloga. Em casa, na minha cama, dormiria de forma mais confortável. Mas não o fez. Deixou-me em paz. Assim se semeiam boas relações e a nossa parecia começar na base do respeito mútuo. Além disso éramos duas almas abandonadas pela mesma mulher. Algo nos unia à partida. Talvez até pudéssemos ser amigos se bem que a cara inexpressiva dela me punha um pouco desconfortável. Ela não teria outro sítio para ir? Uma vez que o encontro com a Mariana, que lhe tinha dito para a esperar, não se realizara a rapariga estava livre para ir à sua vida. Aparentemente não tinha outros compromissos. Que precisão tinha ela de ficar ali? Estava ali para me fazer companhia? Tinha pena de mim? Se sim, eu também tinha pena dela. Com a sua idade, dava-lhe doze, portanto uma criança, o abandono por parte de alguém mais velho era um evento difícil de aceitar. Quanto tempo podemos esperar por alguém até começarmos a duvidar? Aproximei-me da secretária. A rapariga não se dignou a olhar para mim e continuou os seus desenhos. Fazia-os com todo o desplante nas folhas da agenda. Mesmo considerando o desaparecimento de Mariana achei que a rapariga se estava a precipitar ao tomar de assalto os objetos da psicóloga. Ela ainda poderia aparecer. E em todo o caso os pertences dos que desaparecem merecem algum respeito. Não são nossos. Pelo menos até serem encontradas provas do fim do proprietário. No entanto a rapariga do cabelo azul-celeste parecia não tomar isto em conta.

“Ei, também foste abandonada? Obrigado por não me acordares. Estava mesmo a precisar de uma sesta.”

Aquela cara completamente despojada de emoções levantou-se na minha direção.

“No problem.”

Voltou ao que estava a fazer. Desenhava a marcador, muito concentrada, quatro pessoas. O seu traço era infantil. Os corpos não passavam de palitos. Mas era possível identificar duas mulheres, um homem e uma criança. O homem, creio, era eu. Pelas sapatilhas e pelo casaco. As restantes figuras identifiquei como sendo a rapariga do cabelo azul, a psicóloga Mariana e outra Mariana, que ainda só tinha a cabeça.

“Duas Marianas,” exclamei não conseguindo conter o meu espanto.

“Uma é a que chamas Mariana mas a outra não conheces,” explicou a rapariga sem olhar para mim.

Analisando com mais atenção os últimos retoques feitos ao desenho a segunda Mariana usava calças e uma t-shirt decorada com uns gatafunhos. Ao contrário daquela que era psicóloga e envergava o habitual vestido azul-marinho.

“Uma t-shirt de uma banda rock?”

“Joy Division.”

Confirmava-se. Era a tal Mariana fantasmagórica descrita pelo sr. Mário.

“Estou a ver. Está muito giro. Tens imenso jeito.”

Pensei que se quisesse escrever um livro infantil aquela seria a capa. Mas quanto à minha figura teria que ver reduzido o tamanho da barriga. A rapariga tinha-a imaginado um pouco inchada. De resto estava bastante simpático. Eu não estava assim tão gordo como no desenho. Se bem que também não estava magro. Longe ia o tempo da elegância juvenil, resultado de refeições quando calhava e de andar sempre de um lado para o outro a perseguir ideais. Assim era fácil manter a linha. Mas o que fazer, quando se trabalha num escritório com o rabo, o dia todo, assente numa cadeira, para não ficar ao fim de uns meses literalmente com outro corpo? Ir ao ginásio, ter cuidado com a alimentação e consultar um nutricionista? E dinheiro e tempo para isso? Não faria mais nada senão pensar na minha barriga e no meu nariz. Além de que nunca pretendi ser modelo ou atleta olímpico. Como se ser cidadão já não fosse uma tarefa árdua. Malditos credos que inventamos para dar sentido aos dias. Primeiro éramos católicos agora somos helenistas. Quanto mais pensava nas exigências da vida urbana mais a vida rural me surgia pintada de verde e dourado. De qualquer das formas, de onde teria a Mariana desencantado esta rapariga. Que espécie de ligação havia entre as duas? Uma rapariga que tinha o à-vontade para estar no consultório dela a desenhar na sua agenda com marcadores coloridos, que sabe-se lá de onde ela os tirara.

“Alguém telefonou enquanto estavas a dormir.”

Apontou para o telefone que mostrava uma luz vermelha a piscar.

“Deve ter sido a Mariana.”

“Não sei. Não ouvi a mensagem. Ela não gosta que mexam nas suas coisas.”


Disse isto depois de ter atacado a sua agenda com arte. Mas eu não estava interessado em questionar a conduta da rapariga. A minha cabeça estava noutro sítio. Estava no vazio, por assim dizer, pois eu tentava localizar mentalmente a Mariana e a única coisa que encontrava era um nevoeiro cerrado.

“Precisamos de saber se é ela. Deve ter acontecido alguma coisa para ela não aparecer.”

“Tu é que sabes. Não sei que relação tens com a que chamas Mariana. Mas eu cá não mexia em nada.”

Porque é que esta rapariga se está a referir assim à minha ex-psicóloga? A resposta para essa questão ficará para depois. Primeiro queria ouvir a mensagem.