Sherlock

Creio ter notado uma ponta de gozo na cara de Niil. Possivelmente causada pela minha cara subitamente branca ao ouvir que podia ficar sem mão. Contudo isto não passavam de perceções intimas, pois nenhuma alteração se dera de facto na expressão facial dela nem eu ficara pálido.

“O poder só se manifesta em ti enquanto estivermos em contacto. Se eu largar a tua mão voltarás a ser um homem normal. Consegues imaginar o que vai acontecer ao teu braço, aposto.”

Obviamente que conseguia imaginar. Via sangue a correr por todo o lado. De maneira que apertei a mão de Niil com a intenção de nunca mais a largar. 


"Escusas é de me magoar."

“Ah, pois, claro. Onde é que eu estava com a cabeça? Então se o ritual de iniciação está concluído que tal irmos para casa? Vou encomendar uma pizza.”

A partir deste momento comecei a tentar construir a minha vida com Niil. A pizza seria o meu primeiro passo na direção de uma vivência comum harmoniosa. Todos os putos gostam de pizza. É mais forte do que eles. Entretanto as nossas mãos emergiram das profundezas da mesa e eu pude largar a de Niil seguro que não ficaria sem ela. A sensação de retornar a ver o meu membro intacto surgiu-me semelhante a alguém que volta a casa, depois de ter feito uma longa viagem. A minha mão estava deveras contente por voltar a casa.


“Gostas de pizza, não gostas?”

“Não vais ver o que está dentro do livro.”

Niil ignorou completamente a minha pergunta. Se calhar não gostava de pizza como era normal. Afinal ela não era normal. Ou então também adquiriu o hábito da mãe de nunca responder àquilo que se pergunta. Um ato que um estranho poderia achar absurdo mas que não era de todo. Não existe nada pior, para uma relação, do que responder objetivamente durante uma conversa. Se atuarmos assim não temos conversas, temos esgrima de egos. Niil tinha razão. Convinha dar uma vista de olhos a esse livro que marcou a minha imaginação desde o início.

Olhei para contornos da estante que sobressaiam da penumbra do consultório iluminado somente pela luz da secretária da Mariana. A escuridão no exterior era total. Achei isso estranho pois junto ao prédio haviam uns quantos outdoors iluminados. Que de certeza projetavam alguma luz nos apartamentos dos andares mais elevados. O mostrador do meu relógio de pulso mostrava que eram 21 horas e 23 minutos. Não passara assim tanto tempo desde a minha sesta. Com tanta informação a ser-me transmitida imaginei que seria mais tarde. Os outdoors desligavam-se a partir das 23. Comecei por crer que o consultório também se encontrava metade no vazio. Desde que pusera os pés no apartamento a primeira impressão que tive é que o corredor estava estendido sobre o ar e que não havia outra coisa senão vazio sob os meus pés. Mas isso era impossível. O nono andar direito existia e cumpria as regulamentações do prédio. O dossier do projeto mostrava claramente o apartamento tal como ele era na realidade, com a sala onde funcionava o consultório ao fim do corredor. Portanto a explicação para a ausência de luz proveniente do exterior não era de ordem sobrenatural. Talvez as janelas tivessem vidros especiais que impediam a iluminação noturna de entrar. Se o apartamento fora isolado acusticamente então essa hipótese era plausível. 


Niil mantinha-se impávida, à minha espera, com os seus olhos cinzentos apontados à minha cara.

“Sabes que tens os olhos da tua mãe?”

“No shit, Sherlock.”

“Ok.”

Niil não era fã de observações óbvias. Se íamos ter este tipo de intercalações todos os dias então ia mesmo precisar de toda a ajuda que conseguisse reunir. Era melhor ver o que a minha ex-psicóloga tinha para mim, guardado dentro do Dogma.