Niilismo

Não havia mais mensagens e eu não tinha um buraco onde me meter para fugir da situação. Niil, a rapariga de cabelo azul, fitava-me com cara de caso. Um misto de curiosidade e ceticismo invadiam aquela face de criança de doze anos, que até há pouco não tinha mostrado qualquer emoção.

“Chamas-te Niil?”

“O meu nome é Niil.”

O vazio emocional voltou à face dela. E como se eu não acreditasse no nome bizarro que Mariana lhe tinha dado, Niil arrancou uma página da agenda e escreveu o seu nome.


 

“Toma.”

Niil estendeu-me o pedaço de papel amarelado. Peguei nele mas não me passou pela cabeça que ela queria que o guardasse.

“Guarda. Assim não esqueces.”

“Ok.”

Dobrei o papel e coloquei-o no bolso interior do casaco juntamente com a minha carteira. O nome de Niil estaria mais do que seguro ali. O que entra nos bolsos do meu casaco fica lá durante meses. Intacto e preservado da passagem do tempo. Trata-se de uma peça de vestuário que nunca esqueço em absolutamente lado nenhum. Quando uma vez por distração deixara um casaco num restaurante, onde tinha jantado com o Nuno, obriguei o dono do estabelecimento a abrir portas, depois de fechado, para o recuperar. Não podia voltar a casa sem o casaco. O que sai de casa comigo deve voltar a casa comigo no final do dia. Chamemos-lhe uma das fundações da minha vida. Outra das fundações consistia em nunca dormir em camas alheias. Enquanto estudava na universidade e qualquer circunstância me obrigava a dormir fora da minha cama, geralmente celebrações estudantis realizadas para celebrar, creio, o absurdo da vida universitária, eu ficava pior que estragado. Era preciso no mínimo uma semana para me recompor, e voltar a ser eu próprio. É que era certo que iria sofrer de insónias constantes, que me obrigariam a viver num estado de sonambulismo diurno guiado por desejos provenientes sabe-se lá de onde. Ou seja, um Joel muito primitivo surgia em meu lugar. Há gente que adora viver assim. Eu não. Esse rebaixamento da consciência é um processo que só admito após as refeições. Detesto essa existência exterior a mim. Portanto sair de casa e voltar a casa é fundamental para o meu bem-estar. Não se trata de ser avesso a aventuras. Mas para mim ser obrigado a sair da minha zona de conforto contra a minha vontade é perto, em sensação, de ser metido num comboio em direção a um qualquer campo de concentração, tenha ele o nome e a forma que tiver. Quem diz isto diz parques de diversões, escolas, salas de cinema e outros sítios onde a minha entrada pressupõe a permanência até ao final previamente combinado. Claro que qualquer um pode sair. Mas terá que arcar com as implicações sociais de um ato de vontade individual. Não me agradam este tipo de atividades coletivas de caráter coercivo. Chamem-me o que bem entenderem, traidor, infiel, agitador, herege, é-me indiferente. Isto faz-me recuar até à minha infância. Quando o rei fazia anos os meus pais metiam férias e íamos acampar. Eram garantidos pelo menos quinze dias seguidos de vida comum ao ar livre. E sem consolas portáteis, nem leitores de música, pois não havia dinheiro para essas coisas, não havia forma de me evadir de uma dimensão que eu considerava hostil. Para me abstrair era obrigado a passar o tempo a brincar com outros miúdos que nada tinham em comum comigo. Importa dizer que em vez de me divertir ficava cansado de aturá-los. Por outro lado, era uma verdadeira alegria quando encontrava alguém com uma consola portátil, um miúdo rico geralmente. Era certinho que esse miúdo teria o meu coração. Como os meus pais eram gente de hábitos vincados, o parque de campismo escolhido era sempre o mesmo, de maneira que frequentemente tinha a sorte de me encontrar com um miúdo americano, que aparentemente vivia em permanência no parque e estava sempre equipado com as últimas novidades em videojogos. Não me recordo do nome dele. Para mim ele será sempre o miúdo americano. Será que a Niil gostava de videojogos? Pelo que entendi eu teria de ficar com ela até que a Mariana voltasse. Tinha que entretê-la com qualquer coisa. Ela entretanto voltara a desenhar. Agora desenhava um potente carro desportivo vermelho, que mais parecia uma nave espacial. Pelo menos sabia que ela gostava de desenhar. Pensei que seria uma boa ideia comprar-lhe um sortido de marcadores. Se bem que ela já tinha um. Eu não estava a ver donde tinha desencantado aqueles com que estava a desenhar.

“São teus?”

“Não.”

“Então?”

“São daquela a que chamas Mariana.”

Descobrir que os marcadores pertenciam à Mariana não me surpreendera. Só que o sítio onde eles estariam guardados seria numa das gavetas da secretária. Que estavam fechadas à chave. Tendo confirmado isso ao entrar no consultório. Logo só arrombando. Ato que provocaria um estrondo capaz de me acordar. O que não aconteceu. Então havia que considerar que existia um compartimento secreto, algures, que era conhecido por ela.

“E podes dizer-me de onde os tiraste?”

“Da gaveta.”

“Mas a gaveta está fechada à chave. Por acaso tens a chave?”

Se calhar tinha, afinal estava a falar com a filha da Mariana. Niil parou de pintar freneticamente o carro de vermelho, deixando a traseira meio pintada, e tapou o marcador. Pôs-se a olhar para mim. Reparei que, excluindo o cabelo, conseguia encontrar na boca, no nariz e nos olhos, que também eram cinzentos, traços de Mariana. Insolitamente as sobrancelhas também eram azul-celeste.

“O teu nome é Joel.”

“O meu nome é Joel.”

A minha voz não me pareceu a minha. Era como se um cordão tivesse sido puxado e eu como marioneta respondia à vontade do meu mestre. Era Niil, esse mestre?

“Conheces a Rei.”

“Conheço a Rei.”
 

Supus naturalmente que falávamos da Mariana. Rei, outro nome bizarro. Devia tratar-se de uma tradição familiar.

“Desde.”

“Conheço a Rei faz mais ou menos um ano.”

“Ela nunca te falou de mim.”

“Nunca.”

A Mariana que agora se chamava Rei nunca tinha referido que tinha uma filha. Afinal a nossa relação era terapêutica e nada mais. Além disso nunca imaginara a Rei com filhos. Afinal que idade tinha ela?

“A Rei tem trinta e um. Eu não sei que tipo de relação tens com a Rei mas acho estranho que ela não tenha falado de mim.”

“A Mariana era a minha psicóloga.”

“Isso já sabemos.”

E o que é que havia mais para saber? Niil estava admirada da minha ignorância relativamente à sua existência. Mas não havia razões para isso. Mariana, ou Rei, era somente a minha psicóloga e a sua vida pessoal era um assunto sem relevância para o meu caso. Se bem que ela ao longo das consultas teve a oportunidade de reunir bastantes informações sobre a minha vida pessoal e social. Não pude evitar sentir que a minha privacidade fora invadida sem o meu consentimento. Mas era um sentimento infundado, eu consentira. Apenas não pensara nas implicações disso.

“Queres ver a tua ficha?”


"Não."


Após dizer isto Niil ergueu a sua mão esquerda de maneira a mostrá-la por inteiro. Pois ela vestia uma camisola cinzenta cujas mangas eram grandes demais para os seus braços. Ela queria que eu olhasse para a mão. À primeira vista não vi nada de especial. Uma mão de garota. Pequena. Que possivelmente caberia na minha mão fechada. Mas de seguida, pensando na altura que a minha visão me estava pregar uma partida, a mão de Niil tornou-se transparente.

“Sim. A minha mão encontra-se metade no vazio. É por isso que consegues ver através dela.”

Niil colocou a mão à frente da sua cara para eu comprovar o fenómeno. E, sim, eu conseguia ver a sua cara através da sua mão.

“Que espécie de poder é esse?”

“Não sei. Acho que sou a única no universo que consegue fazer isto. Dá-me a mão.”

Eu entreguei-lhe a minha mão direita, que ao tocar na de Niil foi tomada por um frio intenso. A sua temperatura era extremamente baixa para um ser humano. Parecia que eu estava a tocar na superfície interior de uma arca congeladora. Não podia ser um frio real, caso contrário, teria queimado a mão imediatamente. Tinha conhecido pessoas com mãos anormalmente frias mas nada que se comparasse àquele gelo.

“A tua mão está gelada. É normal?”

“É melhor acostumares-te. É a minha temperatura habitual.”

“Caso único. Pelo menos no meu universo.”

“Sim, mas olha para a tua mão.”

A minha mão estava a tornar-se translúcida como a de Niil. Por momentos temi que ela fosse desaparecer completamente mas, a partir de um certo ponto, a opacidade estabilizou. Com a minha mão sobre a da pequena Niil, além de conseguir vislumbrar-lhe os dedos também conseguia ver os marcadores espalhados sobre a secretária.

“Eu consigo transportar o que toco para outra dimensão. Eu chamo-lhe vazio. Mas na verdade é um mistério até mesmo para mim.”

“Quer dizer que consegues atravessar para o vazio.”

“Nope. Eu não consigo ficar invisível.”

“Ainda bem.”

“Why.”



Realmente não havia razão para ficar satisfeito com esse pormenor. Ao ver o que ela conseguia fazer com a minha mão, concluíra que eu também poderia ficar invisível, e isso seria útil para andar de transportes públicos de borla. Só que a hipótese de ter uma garota invisível em casa incomodava-me.

“Agora vou mostrar-te o que se pode fazer com este skill.”

“Espera, nasceste assim? Já a dominar este poder?”

“Não entendo o conceito de nascer. Ou existes ou não existes. Agora mantém-te calado, Joel. Fazes demasiadas perguntas. Vê só.”

Niil puxou-me a mão na direção da mesa fazendo-a atravessar o tampo. Sem que a madeira oferecesse qualquer resistência.

“Porreiro. Então consegues atravessar portas e paredes.”

Assim se explicava eu não ter notado a entrada de Niil no apartamento.

“Qualquer material. E qualquer pessoa ou objeto que eu queira também o pode fazer se mantiver contacto físico comigo. Percebes agora como é que eu arranjei os marcadores.”

“Claro como água.”

A minha mão continuava engolida pela secretária de Mariana e envolvida pelo frio de Niil. Mas a última coisa em que pensava era neste fenómeno. Eu ia viver os próximos tempos, que podiam consistir em semanas, meses ou anos, pois não havia como saber quando Mariana regressaria, com aquela estranha rapariga de cabelo azul-celeste e poderes sobrenaturais, logo tinha que arranjar um quarto para ela. Não me parecia correto pô-la a dormir na sala.

“Bom, Niil, as apresentações estão feitas, podes largar-me a mão?”

“Só se quiseres ficar sem ela.”