“Queria marcar uma consulta, pode ser?”
Ouvi o deslizar de algo a ser engolido e depois mastigado. Algum tipo de massa. Não restavam dúvidas ela estava a comer. E para produzir aquele ruído a comida devia estar bem temperada. Creio que se tratava de comida chinesa. Excluí logo a italiana por não ter ouvido os talheres a bater no prato. Portanto ela estaria a usar pauzinhos. Instrumento que podia ser adotado pelos ocidentais. Seria um avanço civilizacional. Uma vez que os talheres não passam de armas mortíferas em miniatura. Uma faca e um garfo, na mão de quem perceba do assunto, e temos uma família assassinada. Os pauzinhos possivelmente serviam parar tirar a comida de uma embalagem de cartão. Porém isto é pura especulação. O prato podia ser de plástico. Os talheres também. Daí não produzirem o barulho esperado. Talvez um dia saberei o que, de facto, estava a minha psicóloga a comer, mas por enquanto irei considerar que era mesmo comida chinesa.
“Ok. O senhor Joel quer marcar uma consulta. Tem algum dia em mente?
“Pode ser em qualquer dia da semana.”
“E a que horas lhe dá jeito?
“Depois da cinco.”
Novamente o som de comida a ser engolida e mastigada.
“Depois das dezassete não atendo.”
“E no fim de semana?”
“Também não dou consultas no fim de semana.”
Do outro lado da linha veio o som de um líquido a correr por uma palhinha. Não sei que procedimento era este, de comer, enquanto se atendia um possível cliente. De certeza que não era para impressionar pelo profissionalismo, aliás, eu estava a ficar um bocado incomodado com este insólito procedimento. Começava a desejar não ter nada com esta mulher. Nem queria saber do seu consultório no mesmo prédio onde eu morava. Nem que ela fizesse consultas ao domicílio e me passasse a roupa a ferro.
“Como você é meu vizinho, isto apesar de nunca ter correspondido aos meus cumprimentos, irei ponderar sobre dar-lhe uma consulta fora do meu horário de atendimento. Não lhe posso dar certezas, de momento, mas telefonarei noutra altura para confirmar.”
A psicóloga telefonou-me, horas depois, quando eu já não contava com qualquer telefonema, mais precisamente às cinco da manhã. Eu já estava de pé portanto não fiquei chateado por uma hipotética interrupção do sono. Era normal, para mim, acordar antes do sol nascer. Somente questionei-me sobre que tipo de pessoa seria esta Mariana Isabel do Rosário, para fazer uma chamada, àquela hora da madrugada, para confirmar uma consulta.
“Estou?”
“Estou, bom dia, estou a falar com o senhor Joel?”
“É o próprio.”
“Daqui fala a psicóloga Mariana Isabel do Rosário.”
Ela referira-se a si própria pelo nome completo. Devia gostar mesmo do seu nome.
“Era então para marcarmos uma consulta para quarta-feira às dezoito. Pode ser?
“Quarta não dá.”
Era dia de jantar com o Nuno. Ritual mensal criado por iniciativa dele. Aliás, a nossa amizade existia unicamente por iniciativa dele. Desta vez combináramos ir a uma marisqueira. Escolhida por ele. Coisa fina. Já quando era eu a escolher o local, combinava sempre numa tasca que existia logo ao lado da Câmara Municipal. Dava-me bem com o dono e a comida estava sempre no ponto. Nada a ver com dinheiro. Apenas preferia espaços à minha medida. Mas como desta vez o mestre de cerimónias era o Nuno, o local tinha de ser obrigatoriamente um restaurante grande e dispendioso. Creio que ele também não pensava em dinheiro. Era mais pelo espetáculo.
“Sabes do que é que eu gosto no camarão? De lhe chupar a cabeça.”
Sei que ouvirei tiradas destas. Pois o Nuno era um poço sem fundo de frivolidades pornográficas. Portava-se tal e qual um miúdo maravilhado pelo poder dos palavrões proferidos a meio de uma conversa inteligente.
“Foda-se.”
“O que é que disse?”
“Nada. Não era consigo. E sexta-feira à mesma hora?”
“Dá.”
“Então fica combinado sexta-feira pelas dezoito.”
“Está bem.”
“O senhor Joel podia indicar-me o último nome?”
“Ilitch. I, L.”
“Ilitch. Eu percebi.”
Inédito. Em trinta e oito anos de existência foi a primeira pessoa que apanhou o meu nome. Geralmente pediam-me para soletrar ou entendiam outro nome como Ilídio.
“Então, senhor Joel Ilitch, até sexta.”
“Espere.”
“O quê?”
Entretanto a cafeteira italiana, que tinha posto ao lume, começara a fumegar e a chiar indicando que o café estava pronto. Desliguei o bico do fogão.
“Queria fazer-lhe uma pergunta. Já viu as horas?”
“Sim. São cinco e vinte.”
“Certo. E é hábito seu telefonar aos seus clientes durante a madrugada?”
Creio que ela levou a mal esta pergunta porque ficámos não menos de trinta segundos pendurados, em completo silêncio. Foi o tempo de eu preparar o café com dois terços de leite e quatro adoçantes.
“Ainda está aí? Aconteceu alguma coisa?”
“Ao chegar ao prédio vi luz no seu apartamento, por isso presumi que estava acordado. E visto que vive sozinho um telefonema a esta hora não iria incomodar.”
“Eu não estou incomodado com o seu telefonema. Apenas surpreendido e curioso.”
“Curioso?”
“Sobre os motivos que a trazem a esta hora ao seu consultório.”
“Você não tem nada com isso.”
“Certo. Mas tem que admitir que é estranho. Não acha?”
“Sabe, o apartamento é meu. Tenho uma chave que me permite entrar às horas que eu quiser. Além disso eu guardo os ficheiros dos clientes no consultório. E hoje necessitei de verificar a ficha de um, o que me obrigou a vir aqui a esta hora. Acontece. Por coincidência encontrei-o acordado e decidi telefonar-lhe. Simples. Isto porque sabia que não seria transtorno algum para quem sofre de insónias. Percebeu?”
“Sim.”
“Ótimo. Está mais descansado? Acha que ainda consegue ter um bom dia e não desistir da consulta de sexta-feira?"
“Lamento se fui indiscreto.”
“Pessoas com o seu temperamento formam imagens erradas das pessoas. Apenas para se assegurarem que estão corretos e que a razão está do vosso lado. Mas eu não gosto que pensem mal de mim.”
“Asseguro-lhe que nunca pensaria isso de si.”
Afirmação que não correspondia à verdade pois por momentos considerei que ela poderia ser uma prostituta. Quer dizer, vir às cinco da manhã verificar um ficheiro de um cliente poderia ser a codificação para uma atividade pouco ortodoxa. Porquê? Sei lá. Eu penso nestas coisas. E não consigo evitá-lo.
“Você, em vez de juntar leite ao café, faria melhor se lhe juntasse aguardente. Faria-lhe bem beber um pouco de álcool. Desperta o corpo e acalma a mente. Considere isto um conselho grátis. Até sexta.”
A chamada caiu e eu fiquei ali com a caneca de café na mão, a olhar para o telefone, e a imaginar que género de psicóloga aconselharia um cliente a beber pela manhã. Nem me passou pela cabeça questionar como é que a psicóloga Mariana Isabel do Rosário, com o consultório no nono direito, do prédio número 66, sabia que eu bebia café com leite.