Dogma

Fechei os olhos e tentei não pensar. Trabalhar por conta própria não passava de uma fantasia. 18:40 e nenhum sinal dela.

Entretanto o sol pusera-se e a noite começara a entrar pela janela. As cores esbateram-se mergulhando o consultório na penumbra. As sombras recuaram suavizando as arestas, eliminando os vértices e lançando um manto igual sobre as diferentes geometrias. Eu era apenas mais um corpo no meio de corpos. Um corpo como aquela estante que fora colocada ali de propósito para mim. Funcionava como que um símbolo da minha casa. Para que me mantivesse o mais descontraído possível apesar de me encontrar num sítio estranho. A estante já cá estava na primeira consulta mas não no mesmo sítio. Segundo a psicóloga foi o primeiro objeto para onde eu olhei quando entrei no consultório.

“Os clientes geralmente olham para mim. E só depois em seu redor.”

“Ah, sim? Por alguma razão em especial?”

“As pessoas quando entram em sítios que desconhecem procuram alguém que os possa orientar. Digamos que procuram traços de humanidade.”

“Interessante.”

“Mas pelos vistos a minha humanidade não lhe toca pois prefere o conforto de um bom livro.”

A razão para isso era simples.

“Eu possuo uma biblioteca em casa é por isso.”

“Então para primeira sessão vamos colocar a estante em frente ao divã, onde vai passar a maior parte do tempo. Para que se lembre de casa. Isso fará com que se sinta mais relaxado. Não discuta. Vai ver que irá facilitar a nossa relação.”

E assim foi a primeira sessão. Retirámos os livros das prateleiras praticamente em silêncio pois os livros eram sobre psicologia e eu pouco tinha a dizer sobre isso. Da parte dela também não houve qualquer esforço para fazer conversa. Eu comecei por cima. Chegava-se à última prateleira esticando o braço. A psicóloga começou a retirar os livros por baixo. Juntávamos cinco ou seis livros e púnhamo-los no chão. Formando montinhos. Apesar das linhas simples a madeira castanha escura dava um ar maciço à estante. Parecia ser pesada. O chão era atapetado portanto não valia a pena tentar arrastá-la. A coleção que a psicóloga guardava ali era essencialmente composta por obras de cariz académico. Nada de interessante. Edições normais de capa mole. Mas lá no meio encontrava-se um livro que destoava desse padrão. A sua capa azul era dura e o seu tamanho devia rivalizar com o de uma edição d'A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Intitulava-se Dogma e tinha o título impresso com letras serifadas revestidas a dourado. Em segundo plano, logo a baixo, lia-se As Verdades Intocáveis da Humanidade. Nenhuma ilustração. Apenas ouro sobre azul. Que edição pomposa. Tanto que peguei no livro e proferi um comentário, a meu ver sem cabimento. Mais para quebrar o silêncio do que por verdadeira vontade de conversar.

“Gosta de ler?”

“Nem por isso,” disse ela enquanto punha alguns livros no chão. “Pensa que li esses livros todos?”

“Não vejo porque não. Avaliando a quantidade tem aqui literatura para um ano de leituras. Se tanto. Não é muito.”

“Uau. Você é um verdadeiro devorador de livros. Nunca conseguiria ler isso tudo num ano.”

Ela aproximou-se de mim e retirou-me o Dogma das mãos arrumando-o junto aos outros. Devo dizer que fiquei constrangido com a sua reação. Estaria ela a felicitar-me ou a gozar comigo? Apesar de ter optado pela primeira hipótese, visto que ela era uma psicóloga e não haveria de fazer comentários que pusessem o cliente desconfortável, pensei que a palavra devorador era exagerada.

“Só li alguns. Não sou grande leitora. Apenas coloquei aqui uma estante por motivos estéticos. Achei que ficaria bem uma estante com livros de psicologia num consultório de psicologia.”

Tinha a sua lógica. E não ia contra o que eu fazia em casa. Eu abandonara as leituras mas continuava a gostar de ver os livros nas estantes. Estético.

“Sim. Não fica mal.”

Não ficava mal num consultório de aspeto austero. Diria que estava a olhar uma fotografia a preto e branco. Constatação que me fez reparar nos olhos cinzentos da psicóloga. Despojados de qualquer brilho. Mas porque haveriam de brilhar? Estranhamente eu desejava que eles brilhassem.

“Vamos pôr a estante de maneira a ficar no seu campo de visão quando estiver deitado no divã,” sugeriu a psicóloga.

“Ok.”

Coloquei-me numa posição de maneira a agarrar numa das prateleiras enquanto que a psicóloga descalçou os sapatos de salto alto. Ficando apenas de meias pretas sobre a alcatifa cinzenta.

“É melhor desta forma. Pego aqui,” perguntou enquanto pegava no lado oposto da mesma prateleira onde eu já tinha as mãos.

“Pode ser aí. Quando eu disser três levantamos. Acha que consegue?”

“Vamos ver.”

Tinha certas dúvidas se ela aguentaria com a estante mesmo estando vazia. Mas descobri que havia mais força naqueles braços do que no corpo de muitos homens que eu conhecera. Transportámos a estante de uma assentada.

A sessão terminou depois de termos recolocado os livros na estante. E a concentração que Mariana mostrara na arrumação dos livros deixara-me com a impressão de que foram postos nos mesmos lugares de anteriormente. Pelo menos o Dogma tinha ficado no mesmo local. Disso tinha eu a certeza.

“Pronto, por hoje é tudo. Penso que isto foi um bom ritual de iniciação. Se quiser trazer um livro seu para colocar na estante pode fazê-lo.”

“Para quê?”

“Se quiser que este local seja um sítio confortável para si convém que haja algo seu por aqui.”

“Ok. Vou pensar nisso. Parece-me uma boa ideia.”

A psicóloga abriu a agenda e perguntou-me se na próxima sexta-feira à mesma hora me dava jeito. Respondi que sim. Lembro-me que ela não voltara a calçar-se depois de transportarmos a estante.