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Parece que adormeci. Quando despertei já era noite cerrada e o consultório não passava de um borrão negro. O mostrador luminoso do meu relógio de pulso indicava que eram quase vinte e uma horas. Tinha o corpo dorido como se tivesse estado a dormir durante muito tempo seguido. Porém não tinham passado mais de duas horas desde que me deitara no divã para repousar um bocado. Voltei a fechar os olhos. Queria relembrar o sonho que tivera. Foi mais enigmático do que o habitual. A aparição da psicóloga em sonhos não costumava trazer consigo uma ameaça ao meu eu onírico. Mas foi o que aconteceu. O seu desaparecimento súbito desencadeou um desenvolvimento que não me era favorável. Uma morte por afogamento não era de todo uma resolução favorável ao enigma que me atormentava a mente. Mas que podia ter feito para evitar esse desfecho? Eu até tentei oferecer-lhe as galochas para que não molhasse os pés. De onde terá despontado aquela torrente invasora? Se ela tivesse esperado as coisas teriam corrido doutra forma. Em vez disso abandonara-me à minha sorte. Uma atitude nada cortês visto que me encontrava no seu consultório. E depois ainda havia a críptica mensagem. Descobri que a Mariana falava inglês quando na realidade nunca tinha ouvido, da sua boca, outra língua senão o português. Give up on beauty. E queria ela que desistisse da beleza? Ora, não percebia porquê. Eu nem sequer me considerava um romântico. Estava a escapar-me algum pormenor. Este sonho, em específico, costumava terminar com uma visão dos seus pés, juntos, calçados com meias pretas, sobre o chão alcatifado cinzento claro. Os pés eram quiméricos pela sua pequenez. Quase chineses. Portanto não eram uma réplica dos pés de Mariana. Que eram, no meu olhar, normais. Parecia-me claro que se ela desaparecera assim, ao fim de tanto tempo, foi porque, das duas uma, ela aborrecera-se com a minha inércia e partira para sempre ou porque eu tinha de abandonar o meu estado psicológico atual, representado pelo consultório, para ir atrás dela. Mas a saída encontrava-se trancada. Isso obrigava-me a procurar uma chave. A chave do consultório da Mariana, quem a guardava, era ela própria. E ela sumira-se, espantosamente, de duas dimensões diferentes, em simultâneo. Um evento inesperado? Ou há muito anunciado? Se foi anunciado então o anúncio chegara-me por uma via pouco ortodoxa. Verdade seja dita, eu não dava um tostão pelos meus sonhos. Eram escassos, fragmentados e obtusos. Impossíveis de alinhavar de forma a compor um linha narrativa credível. No entanto este sonho vinha revestido de uma nitidez desconcertante. Não podia ignorá-lo. Se o fizesse estaria a desrespeitar a minha inteligência. Era algo mais do que rêverie. Era um aviso. O último aviso de uma série de avisos. Eu até que cheguei a manifestar a minha preocupação à psicóloga, relativamente a estes carroceis noturnos, contudo a minha curiosidade não fora bem recebida da parte dela. Em resumo, a cena do costume.
 

“Ultimamente tenho sido atormentado por um sonho recorrente. Quase todas as noites. Desde há um mês para cá. Umas vezes com variações outras inserido noutros sonhos. E sinceramente não sei o que pensar. Nunca me tinha acontecido.”

“O sonho é sobre algo de que se sente à vontade para falar?”

“Infelizmente não. É demasiado pessoal.”

“Compreendo.”

Esperava que ela me ajudasse a desenrolar este novelo mas não. Manteve-se calada. Portanto se queria lançar alguma luz sobre o caso tinha que me esforçar mais. Como a consulta daquele dia tinha tecnicamente acabado eu sentia-me à vontade para insistir no assunto. E apesar de continuarmos nas nossas posições habituais, de psicólogo e cliente, agora era eu que orientava a conversa.

“Um sonho recorrente normalmente significa o quê?”

“Consiste num pedido de ajuda,” respondera ela, abanando ligeiramente a perna direita, que mantinha cruzada, provocando uma oscilação da luz refletida na ponta do seu sapato verde alface. Uma cor que não ia contra a moda mas que não era de acordo com a moda. O preto tinha vingado nesse ano e tinha-se tornado de mau gosto andar de roupas coloridas em sociedade.

“Um pedido de ajuda da pessoa que sonha ou também das pessoas que participam no sonho?”

“Será somente da pessoa que sonha. Se o sonho é seu é você que está em apuros.”
 

O sonho não dava a ideia de que eu e a psicóloga estaríamos em apuros.

“E devo pedir ajuda à pessoa que surge no sonho?”

“A questão que o Joel deve colocar é se a pessoa em questão o pode ajudar e se não procurar outra solução.”

“Fala por experiência própria?”

“Tinha ficado acordado que quando chegasse o momento em que podia começar a fazer-me perguntas pessoais, eu avisaria, recorda-se?

“Vagamente.”

Ela também precisava de ajuda. Foi o que pensei no momento.

“Mas eu respondo. Não. Não tenho sonhos recorrentes portanto não tenho bases para lhe responder.”

“Então quer dizer que nunca precisou de ajuda?”

“Joel, eu não sei onde quer chegar com esse raciocínio. Mas preste atenção ao que lhe vou dizer. Eu não sonho desde os meus doze. Pode não ser normal mas eu nunca senti a falta deles. Se calhar não tenho problemas que me atormentem a mente e por isso essa compensação seja desnecessária.”

Mais uma vez alongara-se mais do que seria necessário para uma psicóloga. Que precisão tinha eu de saber que ela não sonhava desde os doze? Ela por vezes tornava-se inexplicavelmente emocional.

“É óbvio que eu não tenho problemas de maior. Foi precisamente isso que me levou a querer fazer vida de ajudar os outros,” rematou por fim a psicóloga.