Contra o que seria indicado arrisquei abrir a porta do consultório para espreitar. Estava a ser demasiado ousado e a psicóloga nunca me dera confiança para tais liberdades. Mas uma vez que ela falhara, com a sua parte do contrato, já nada podia ser como dantes. Como tal eu tinha que alterar a minha posição de acordo com as novas exigências. Estava na hora de desarrumar. Rodei a maçaneta que constatei nunca ter sido tocada por mim. Um gesto simples mas sempre executado por Mariana que em todas as sessões desempenhava este papel de porteira. Era ela que abria e era ela que fechava. Sem ela não podia transpor esta fronteira. São estranhas as leis que permitem a convivência entre pessoas diferentes. Regras de um jogo sem vencedores. Mas hoje as regras mudaram. Empurrei a porta e encontrei a previsível sala vazia. Feliz Dia de São Nunca à Tarde. O inesperado realmente acontece. Aparentemente tudo se encontrava no seu devido lugar excepto a psicóloga que se sumira sem deixar rasto. A disposição dos móveis estava igual à última vez que cá entrara. A secretária junto à extensa parede de vidro que fazia de janela, o divã, onde eu me deitava, a poltrona onde ela me ouvia, as paredes vazias e a pequena estante que continuava repleta de livros. As cortinas da janela corridas, como sempre, um pormenor que nunca me permitira vislumbrar a vista do nono andar.
Então isto significava que tinha ocorrido algum imprevisto na vida da minha psicóloga. Ela ainda podia aparecer. O relógio marcava 18:14. Dispus-me a esperar até às dezanove. Depois voltaria para casa e telefonaria mais tarde a perguntar o que se passara. Podia ligar-lhe agora do telemóvel mas se ela estava mesmo ocupada eu não podia fazer nada para a ajudar. Algum acontecimento excecional levara-a a abandonar o consultório sem avisar ninguém. Algo que não estava planeado, tendo em conta, que aquela garota na sala de espera também não estava a par do ocorrido. A Mariana não ia abandonar uma criança à sua sorte. Creio eu.
Aproximei-me da secretária à procura de algum indício que lançasse alguma luz sobre este súbito desaparecimento. Não encontrei nada que pudesse apontar para algo repentino. A cadeira encontrava-se arrumada junto à mesa. A agenda estava onde normalmente costumava estar, com a lapiseira castanha que ela usava colocada sobre a capa. O candeeiro metálico de braço ajustável continuava na mesma posição. E o jarro de água com um conjunto de dois copos continuava imaculado sobre o tabuleiro. Olhei para os copos e para o jarro tentando reparar em algum sinal de uso mas nem risco ou mancha era possível encontrar no vidro. Como se nunca tivessem sido usados. E de facto não me recordo dela ter bebido água à minha frente ou de sequer me ter oferecido um copo. As gavetas onde ela guardava as fichas dos clientes também se encontravam fechadas. Não valia a pena tentar abri-las pois deviam estar fechadas à chave. O telefone também não mostrava qualquer sinal de chamadas não atendidas ou mensagens no voice mail. Portanto ela saiu do escritório calmamente. Levando apenas a sua carteira de mão. Ela não usava malas de nenhum tipo. Só me restava ir embora pois não fazia nada ali. O divã, por seu lado, parecia convidar-me para repousar por uns momentos. Estaria o móvel com saudades de sentir o meu corpo. Acabei por aceitar o convite. Precisava de descansar um pouco e ainda não tinha parado desde que saíra do trabalho. Para mais tivera umas chatices com o Nuno e com o diretor do departamento por causa do meu rendimento. Estava a diminuir e isso dificultava a compressão da informação recolhida. Pelos vistos pensamentos fragmentados faziam o computador trabalhar o dobro do tempo para comprimir a mesma quantidade de informação.
“Tu és bom. Mas se não manténs a concentração temos de arranjar outro,” atirou-me o Nuno à cara.
“E onde é que vais arranjar outro como eu? Um sincronizador não se treina de um dia para o outro. E além disso a maioria não aguenta o processo de adaptação.”
“Não te preocupes. Temos experimentado com mulheres e a sua adaptação às rotinas de sincronização é três vezes mais rápida que nos homens.”
Essa era uma história mal contada. O sistema, de nome Gesti, tinha sido concebido para homens, que inicialmente tinham de corresponder, em 100%, ao perfil de sincronizador estipulado pelo seu criador. Basicamente o sistema para funcionar bem tinha que ter à frente do terminal um utilizador semelhante ao pai do sistema. Ajustes foram feitos para que aceitasse um leque mais vasto de perfis em detrimento da qualidade do output. E foi relativamente fácil fazê-lo com sucesso em relação ao sexo masculino. Quanto à tentativa de introduzir o sexo feminino nesse leque de perfis os resultados não foram bons. Foram de tal maneira maus que levaram ao afastamento imediato das mulheres. Foram feitos esforços no sentido de criar uma versão feminina do software mas aquando da morte do criador só havia um versão beta que deixava muito a desejar. Desde essa altura as coisas não melhoraram apesar do tremendo investimento feito nessa versão. Metade da humanidade ainda não podia sincronizar em segurança. E a questão nem passava pelo hardware pois qualquer pileca informática corria o sistema Gesti.
“E os números da taxa de suicídio? Durante o período de adaptação é de 82% entre as mulheres. Nos homens não passa de dez. Não podem...”
“Podemos. Esses números não são oficiais. São para utilização interna. Além do mais isso é irrelevante. Candidatas não faltam.”
“Isso que dizes é uma barbaride.”
“Pois é. Portanto trata de fazer bem o teu trabalho e salva algumas desta porra. Os chefes querem resultados.”
A conversa de hoje não tivera direito a piadas de mau gosto. O Nuno estava mesmo a falar a sério. E se os chefes queriam resultados, independentemente das consequências, então as tensões diplomáticas, que os jornais noticiavam diariamente, podiam ser sinais de uma nova guerra no horizonte. Seriam capaz de me despedir se eu não entrasse nos eixos? Se fosse despedido podia tentar trabalhar por conta própria. Uma ideia que ponderei várias vezes assim que percebi o bê-á-bá do ofício. Os aparelhos de sincronização não são tecnologia de ponta caso contrário o Estado não estaria tão à-vontade para os comprar. Mas não podia esquecer que o Estado mantinha esse comércio vigiado por uma polícia especial de maneira a monopolizar a sua utilização. Contudo era possível fugir a isso. Bastava comprar um terminal de acesso a um mundo virtual qualquer e modificá-lo de maneira a reunir outro tipo de neuro-dados que não aqueles inicialmente programados. O grande problema de trabalhar a título individual era a encriptação, que era um negócio caro. Não poderia andar a sincronizar como se estivesse a fazer uma vídeo-chamada com um familiar. Tinha que arranjar proteção para as informações reunidas. Aí é que as coisas começavam a ficar perigosas. Limpar-me-iam o sebo em dois tempos só para ficarem com a informação sem terem de a pagar.
Tratavam-se de possibilidades. As possibilidades de um náufrago numa ilha deserta. Rodeado de água a perder de vista. Sonhando para se distrair e não sentir a terra que tremia dia e noite, anunciando. Não penses nisso, Joel. Aproveita o silêncio do consultório da tua psicóloga. Ele não durará para sempre.