C
onfesso que fiquei bastante surpreendido em encontrar uma página onde eles se encavalitavam uns em cima dos outros a competir pela minha atenção. Desde quando a psicologia se tornara numa profissão assim tão desejável? Em quantidade quase que chegam ao calcanhares dos astrólogos e cartomantes. Entre uns e outros penso que a diferença essencial está no estilo, pois se o mercado onde operam é sensivelmente o mesmo, já o esoterismo tem um charme ancestral que a psicologia moderna não consegue conquistar. E o feliz psicólogo da minha escolha foi mesmo aquele que se encontrava o mais perto possível da minha residência. Por destino, ou mera coincidência, havia um consultório precisamente no prédio onde eu morava. Longe de pensar que seria demasiado bom para ser verdade, considerei até que era bastante conveniente. Assim escusava de andar às voltas, depois de sair do trabalho, só para ter uma conversa que poderia dar em nada. Conheci algumas pessoas que recorreram a psicólogos durante períodos difíceis das suas vidas mas, por azar ou vontade própria, acabaram a tomar ansiolíticos e soporíferos ao constatarem que o palavreado pouco as ajudava. Se era para acabar no consumo de substâncias julgo que optaria por uns copos com os colegas lá do trabalho. Definitivamente a psicologia está longe de ser uma ciência exata com resultados garantidos. Porém eu estava decidido em não desistir se a primeira tentativa corresse assim para o torto. Haveria de encontrar um psicólogo que valesse o seu diploma. O que aconteceu é que foi mesmo à primeira, e não descobri um, mas uma psicóloga. Inclusive já tínhamos partilhado o elevador em algumas ocasiões. Mas nesses momentos em que partilhámos o espaço, separados por poucos centímetros, eu não reparei nela. Verídico. Ainda hoje não sei explicar como é que isso aconteceu. Logo a mim, que conheço todos moradores do prédio. Logo a mim, que levo a sério as minhas obrigações comunais. Tão seriamente as levo que fui, por cinco vezes consecutivas, eleito o responsável pelo condomínio. Eventualmente fui destronado pela empresa de gestão de condomínios A Rainha do Lar. Fiquei profundamente amargurado. Isto porque tinha um certo prazer em mudar a lâmpada da porta do prédio. Fazia-o possuído por um zelo que se pode apelidar de pouco usual. Um zelo, como defini-lo? Exato, um zelo de militante. Afinal, caro tovarich, o bom funcionamento da sociedade está nas nossas mãos e depende de pequenos nadas como trocar lâmpadas. E considero isso reconfortante. Verdadeira música para os meus ouvidos. Pequenos nadas, como arejar a casa, limpar o pó, lavar a loiça, estender a roupa, despejar o lixo e outras banalidades domésticas do género, fazem me sentir que pertenço a algo, que eu importo. De maneira que nunca poupava nas lâmpadas. Escolhia sempre a melhor marca que havia na prateleira do supermercado e mantinha um stock repleto delas, para a eventualidade de alguma se fundir. Agora que penso nisso, o sistema elétrico devia ter algum problema pois aquela luz fundia-se mais vezes do que seria de esperar. Será que foi isso que propiciou o recrutamento d'A Rainha do Lar? Realmente podia ter chamado um eletricista para verificar a instalação elétrica. Mas é tarde para pensar nisso. As coisas mudaram. As coisas mudam. Simplesmente. Não é que se ganhe muito com mudanças mas como somos bichos insatisfeitos por natureza não há nada que se possa fazer para contrariar as mudanças, mesmo aquelas que não foram pedidas. Vivemos numa permanente Nouvelle Vague. Agora o que não consigo conceber é isso se ter passado sem que eu me tenha apercebido das movimentações hostis que se perpetravam na escuridão. Ser apanhado desprevenido mexe realmente comigo. Fico histérico. Escusado será dizer que o caso está intrinsecamente ligado com a entrada em cena da minha psicóloga e pode-se considerar um daqueles casos paranormais que nunca vai ser explicado. Porquê? Porque me irão considerar louco no primeiro instante em que eu abrir a boca para tentar explicar que uma mulher, que nunca tinha visto mais gorda, apesar de já a ter visto mais que uma vez, sem contudo reparar nela, e que agora é minha psicóloga, fez-me aquilo e aqueloutro, e graças a ela fiquei sem a minha fiel lâmpada do hall de entrada, acontecimento que me lançou numa depressão. Como é que é? Depois quem é que traz o pão para casa? É que o meu trabalho exige uma cabeça limpa e arrumada. Senão, chapéu! Estão a ver? Histérico. No entanto achei melhor deixar passar este episódio de cegueira e fingir que estava inteirado de tudo desde o princípio. É que a pessoa que sugeriu A Rainha do Lar foi precisamente ela, a minha psicóloga. Os restantes condóminos dizem que aprovei imediatamente a ideia pois estava farto de mudar a lâmpada do hall de entrada. Digamos que isso só podia ser mentira porque, em primeiro, eu até tinha orgulho em ser o guardião da lâmpada do hall de entrada e, em segundo, porque a Mariana Isabel do Rosário nunca tinha posto os pés numa reunião de condóminos. Mas quando fui verificar a folha de presenças lá estava o nome dela. Escrito numa letra perfeitamente legível. Aliás ela marcou presença em todas as reuniões desde que instalara o seu consultório no nono andar direito.
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